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Fortaleza
de Longueville. Normandia. Primavera de 1197
«Isabelle
de Clare, condessa de Leinster e Striguil, esposa do assessor do rei Ricardo,
dava à luz o seu quarto filho. Vai nascer de rabo, anunciou a parteira, limpando
as mãos a uma toalha depois de examinar a sua paciente. Deve ser um rapaz, são sempre
eles que dão mais problemas. Isabelle fechou os olhos e reclinou-se nos travesseiros
empilhados. Durante a manhã, as contracções haviam-se tornado cada vez mais
frequentes e dolorosas. As suas damas de companhia tinham-lhe desfeito as tranças
do cabelo, para que não existissem nenhumas amarras em seu redor que pudessem prender
o bebé ao útero, e as espessas madeixas douradas como o trigo espalhavam-se
sobre os ombros e seios inchados e tocavam-lhe na barriga arredondada. Ele
já estava atrasado. O seu marido esperara acolher o seu novo rebento antes de partir
para a guerra dez dias antes, mas, ao invés, tivera de se despedir de Isabelle com
um beijo à distância, já que a sua barriga grávida parecia uma montanha a separá-los.
Estava-se agora em Maio. Se ela sobrevivesse à gravidez desta criança e ele conseguisse
ultrapassar a campanha de Verão, ver-se-iam no Outono. Por agora, ele estava algures
no seio de Beauvaisis com o seu soberano, e ela desejava estar em todos os lugares
menos nestes aposentos atravancados a passar pela provação do parto.
Uma
contracção teve início no fundo da coluna e apertou-lhe o útero. A dor apoderou-se
da parte de baixo do seu corpo, fazendo-a ofegar e cerrar os punhos. Dói sempre
mais quando eles vêm de rabo. A parteira olhou astutamente para Isabelle. Não é
o seu primeiro; sabe o que a espera, mas as crianças que chegam ao mundo pela parte
de trás têm uma passagem perigosa. A cabeça vem em ultimo lugar, e isso não é bom
para o bebé. E melhor rezar à abençoada santa Margarida para pedir ajuda. Fez sinal
para a imagem de madeira pintada colocada sobre uma arca ao lado da cama,
rodeada por um brilho de velas votivas. Tenho-lhe rezado todos os dias, desde que
soube que estava de bebé, disse Isabelle de forma irritadiça, sem acrescentar
que o parto atrasado de um bebé a nascer de rabo dificilmente seria uma feliz
recompensa para a sua devoção. Estava quase a sentir aversão à imagem. Quem quer
que a tivesse esculpido tinha-lhe colocado uma expressão santimonial muito semelhante
a um sorriso arrogante. A contracção que se seguiu fê-la contorcer-se e ter vontade
de fazer força. A parteira fez sinal à rapariga que a auxiliava e ocupou-se do interior
das coxas de Isabelle. Devia convocar o seu capelão para baptizar a criança
imediatamente, anunciou ela, com a voz abafada pelo lençol levantado. Já tem nome?
Gilbert,
se for menino, e Isabelle, se for menina, disse Isabelle, por entre dentes
cerrados, enquanto fazia força. A contracção desvaneceu-se. Deixando-se cair nos
travesseiros, pediu, ofegante, a uma das damas de companhia que fosse buscar o
padre Walter e lhe pedisse para esperar na antecâmara. Mais uma dor se apoderou
dela, depois outra e mais outra, violenta e severa, agora sem intervalos,
enquanto o seu corpo se esforçava por expelir o bebé do seu útero e fazê-lo entrar
no mundo. Arquejante, chorou e gemeu com estorço, com os tendões a sobressaírem-lhe
na garganta, as mãos agarradas às das suas companheiras com força suficiente
para lhes deixar marcas permanentes na pele. Houve um súbito jorro de calor húmido
por entre as suas coxas e a parteira começou às apalpadelas. Ah, disse ela, com
satisfação. Eu tinha razão, é mesmo um rapaz. Ora, e tem um belo par de tintins!
Vamos lá ver se conseguimos mantê-lo vivo para lhes dar uso, hã? Faça força
novamente, minha senhora. Mais devagar, mais devagar. Com calma, agora.
Isabelle
mordeu o lábio e debateu-se para não fazer força com o ímpeto que os seus instintos
lhe ditavam. Pegando nos tornozelos do bebé, puxando com cuidado, a parteira
levantou-lhe o tronco por cima do abdómen de Isabelle. Quando a boca e o nariz
emergiram do canal do parto, ela limpou-lhes o sangue e o muco e, depois, observando
atentamente, controlou a saída do resto da cabeça com uma mão meiga. Apoiada sobre
os cotovelos, Isabelle fitou o bebé deitado sobre o seu corpo como um marinheiro
afogado, naufragado. Tinha uma cor cinzenta-azulada e não se mexia. O pânico apoderou-se
dela. Sagrada Santa Margarida, ele está... ? A mulher levantou o bebé pelos
tornozelos, balançou-o suavemente e deu-lhe uma palmada vigorosa nas nádegas, depois
mais outra. Um tremor percorreu-o, o seu peito pequenino expandiu-se e um choro
de protesto encheu o ar, inseguro ao início, mas ganhando força e infundindo-lhe
no corpo um vitalizante rubor rosado.
Endireitando-o,
a parteira virou-se para Isabelle, com um sorriso a vincar-lhe as pregas das bochechas
enrugadas. Só precisava de um bocadinho de persuasão, disse ela. Mas é melhor que
o padre lhe dê um nome, pelo sim, pelo não. Embrulhou-o numa toalha quentinha e
colocou-o nos braços de Isabelle. Depois de cortado o cordão umbilical e de expelida
a placenta para ser levada para enterrar, Isabelle contemplou os traços enrugados
pelo parto do seu filho recém-nascido e, ainda profundamente ansiosa, observou a
sua respiração fraca. Um desconcertado e ligeiramente intrigado franzir de
sobrolho enrugou-lhe as sobrancelhas delicadamente desenhadas. As suas pequeninas
mãos estavam cerradas com força, como se fossem combater o mundo no qual fora tão
brutalmente iniciado. Gilbert, disse ela, suavemente. O que será que o teu pai irá
fazer de ti? Soprou-lhe suavemente para a bochecha e deu-lhe o dedo indicador, para
que ele enrolasse à sua volta a mão em miniatura. Passado um momento, ela desviou
o olhar do bebé e fixou-o na janela dos seus aposentos e no arco de suave céu
azul que ela emoldurava. A sua própria provação estava quase terminada e, se Deus
quisesse, se ela não apanhasse a febre puerperal, em breve estaria a pé.
Poderia agradecer a Santa Margarida com uma oferenda e voltar a guardá-la na sua
arca, até que fosse necessária. Agora iria concentrar-se em orações pela segurança
do seu marido e pedir a Deus que o trouxesse de volta a casa inteiro, para
conhecer o seu novo filho». In Elizabeth Chadwick, O Leão Escarlate,
2006, Edições Chá das Cinco, 2009, ISBN 978-989-803-247-8.
Cortesia
de ECdasCinco/JDACT