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O
Verão de 1899
«(…)
Iskander Pasha duvidava dos motivos que tinham levado o filho mais novo a fazer
semelhante escolha e, neste aspecto, não andava muito longe da verdade. O meu
pai agia sempre com o mesmo refinamento e elegância com que se movimentara nos salões
parisienses onde, durante muitos anos, exercera as funções de embaixador da
Sublime Porte junto da República Francesa. Isto era o que nos contava o nosso
irmão mais velho, Saiman, que fora autorizado a acompanhá-lo e fizera os seus estudos
superiores na Academia de Paris, facto que o transformara num amante de tudo o
que fosse francês, com excepção dos homens. Sempre que o meu pai regressava de
Paris trazendo consigo móveis novos, tecidos e quadros de mulheres nuas para a
ala ocidental da casa, e perfumes para as suas esposas, o nosso estado de
espírito melhorava consideravelmente. Halil sussurrava: talvez, desta vez, ele
se tenha transformado num homem moderno. Ríamos todos, ansiosos. Talvez pudéssemos
realizar na nossa casa um baile de Ano Novo. Usaríamos vestidos, dançaríamos e
beberíamos champanhe, exactamente como o nosso pai e Salman faziam em Paris e
Berlim. Sonhos inúteis. A nossa vida nunca se alterava. Uma vez no meio
familiar da sua cidade e do seu país, o meu pai de pronto adoptava o
comportamento e os maneirismos de um aristocrata turco.
Desde
o dia em que fugira para me casar, esta era a primeira vez que voltava a ser
convidada para regressar à velha casa de Verão, se bem que apenas na companhia
de Orhan. Dmitri e a minha adorável Emineh ficaram em casa. Talvez para o ano,
prometera a minha mãe. Talvez nunca!, ripostara eu aos gritos, furiosa. A minha
mãe visitara-me por três vezes, mas sempre em segredo, levando roupas para as
crianças e dinheiro para mim. Agia como intermediária e, muito lentamente, as
relações com o meu pai acabaram por ser restabelecidas. Começámos a comunicar um
com o outro. Ao fim de dois anos a trocar cartas bem educadas e insuportavelmente
formais, ele convidou-me papa levar Orhan até à casa de Verão. Sinto-me feliz
por ter aceite o seu convite. Estive prestes a recusá-lo. A minha vontade era
insistir que não iria ter com ele a menos que também pudesse levar a minha
filha comigo, mas Dmitri, o meu marido, convencera-me de que estava a ser
teimosa e idiota. Agora sinto-me satisfeita por não ter deixado que o orgulho levasse
a melhor. Caso tivesse pedido desculpas pelo meu acto de desafio e implorado a
seus pés para que me compreendesse, há muito que teria sido perdoada.
Contrariamente à impressão que possa ter criado, Iskander Pasha não era um homem
cruel nem vingativo. Tratava-se de uma criatura do seu tempo, inflexível e ortodoxo,
na forma como lidava connosco.
Nessa
primeira noite, enquanto Orhan dormia saí de casa e pus-me a caminhar por entre
os pomares, o cheiro familiar a tomilho e à árvore da pimenta a despertar um
número infinito de recordações. A Mulher de Pedra ainda lá estava, e dei por
mim a segredar-lhe: regressei, Mulher de Pedra. Regressei com um rapazinho. Senti
a tua falta, Mulher de Pedra. Houve muitas coisas que não pude contar ao meu
marido. Nove anos é muito tempo, quando não se pode falar dos nossos próprios
desejos. Três dias depois de o meu pai ter contado a Orhan a história de Yusuf
Pasha, sofreu uma trombose. A porta do seu quarto encontrava-se entreaberta. As
janelas que levavam à varanda estavam abertas de par em par e uma brisa suave
trouxera consigo o cheiro doce dos limões. A minha mãe costumava entrar no
quarto dele logo de manhã cedo para abrir as janelas, de modo que ele pudesse
sentir o odor do mar. Naquela manhã, entrou no quarto e viu-o a respirar de
maneira estranha, deitado de lado. A minha mãe fê-lo voltar-se. O rosto do meu
pai apresentava-se mudo e pálido. Os seus olhos fixavam um qualquer ponto
distante e, de maneira instintiva, ela soube que eles procuravam algo situado
fora desta vida. O meu pai sentira o toque gelado da morte e não desejava
prolongar a sua existência». In Tariq Ali, A Mulher de Pedra, 2000,
tradução de Lucília Rodrigues, Publicações Europa América, Contemporânea,
2002/2003, ISBN 972-105-125-X.
Cortesia
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