quarta-feira, 22 de junho de 2016

A Princesa Boémia. Maria João Gouveia. «Na desnuda, embora ampla, Sala de Espera, obsequiada com escassos móveis, Pedro, junto às honrosas pinturas de vários membros dos Braganças que desfilavam nas paredes»

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«Creio que o cavalheiro já é capitão, avançou a fidalga. Ah, capitão! Será então certamente um velho de tricórnio, curvado e maldisposto, a cheirar a cachimbo!, gracejou matreiramente a adolescente, lançando a cabeça para trás com uma sonora gargalhada, certa de arreliar a sua aia, que contrariava a acriançada insinuação da sua princesa fazendo do forasteiro um retrato deveras favorável e apelativo. Todavia, nem a auspiciosa imagem que Mariana Carlota traçava do príncipe gaulês parecia cativar a atenção da real Francisca, que das gaivotas deslocava agora a sua atenção para dois tomos encadernados a carmim, de letras douradas, que repousavam esquecidos numa embalagem estampilhada meio aberta, a um recanto da escrivaninha de carvalho embutida a pedraria, estilo Luís XV. Haviam chegado há pouco de Lisboa, os livros, informou a jovem, acariciando-lhes a capa num gesto reverenciador. Enviara-os a Mana Maria. Excelentes novidades, certamente, anuíra a ama, embora certa de que a sua soberana os não iria ler; mas por ora a falua alcançava o cais e era hora de se compor para receber o nobre francês.
Aparentemente ainda perdida nas suas divagações, Francisca mostrou interesse em saber o nome da fragata comandada pelo oficial que tantas loas merecera de Mariana Carlota Coutinho, em quem os infantes de Pedro IV de Portugal viam uma segunda mãe. L'Hercule, fez saber a aristocrata; L'Hercule, repetiu pianíssimo Francisca, parecendo desinteressada. Para aquietação da fidalga, a filha de Pedro IV abeirou-se então do seu alto e estreito guarda-fatos, que rimava com a cama oitocentista, retirou um dos seus vários fatos de montar, sóbrios e insípidos, e apressou-se a vesti-lo; depois, lançou arbitrariamente mão de uns singelos brincos de pérolas guardados num acanhado contador, sobre o móvel da sua cómoda, em laca perlada e ferragens a cobre, ajeitou o gancho que lhe prendia uma madeixa de cada lado por sobre os cabelos que lhe caiam soltos e lisos pelas costas, e, colocando sobre os ombros um sóbrio xaile branco em croché, fez saber à sua paciente ama que estava pronta. Face à pressa e à séria talha que fora persuadir a sua pupila a conceder receber o príncipe estrangeiro, a Senhora de Magalhães cedeu no rito do banho e na parcimoniosa toilette separada, e lá foi Francisca Carolina escada de mármore abaixo, irrequieta e saltitando de degrau em degrau, ainda redizendo baixinho L'Hercule.
Na desnuda, embora ampla, Sala de Espera, obsequiada com escassos móveis, Pedro, junto às honrosas pinturas de vários membros dos Braganças que desfilavam nas paredes, examinava interessado a orla do Atlântico a que chegava a embarcação francesa, na sua solene quietude de menino-rei. O dia preguiçava morno e radioso, espreguiçando-se o sol por tímidos raios que iluminavam a baía da Guanabara, naquela sonolenta manhã de Janeiro de 1838. Julgando-se a sós na ampla sala de faustosos tectos em trompe-l'oeil, a sépia e ouro, com cantos figurativos evoluindo para ramagens, o juvenil monarca esfregou os olhos, pouco acostumado que estava a alvorar. As elevadíssimas temperaturas do Verão fluminense, com dias quentes e tórridos e noites abafadas, dificultavam aos Braganças brasileiros manter uma rotina próxima da europeia.
Pedro de Alcântara aguardava a aportada do príncipe de Joinville, predita semanas antes por carta punhada pela sua prima, a rainha Maria Amélia Teresa, consorte do seu congénere francês e mãe do viajante, à infanta Januária Maria do Brasil. Rezava aquela que o infante francês havia largado de Constantinopla pelo Outono rumo a Vera Cruz, com o intento de conhecer as províncias; acalentava, porém, a soberana gaulesa, o anelo secreto de que o filho se maravilhasse com Francisca de Bragança e a ela, respeitados o tempo de espera que a jovem idade da princesa impunha, aprovasse unir o seu destino. A Mana Januária confidenciara ao seu irmão, três anos mais novo do que ela e regente sob tutela, dada a sua juventude, a pretensão da nobre parente italo-francesa de ambos, implorando-lhe reserva e discrição na administração de tal confidência». In Maria João Gouveia, A Princesa Boémia, 2013, Topseller, 20/20 Editora, ISBN 978-989-862-626-4.

Cortesia Topseller/JDACT