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Cai
chuva do céu cinzento
«Desde
hoje estou só, escrevi eu um dia à mamã, mais querida para mim do que algum dia
eu fui para ela. Outrora, criança, via-me reflectido na humidade azulácea dos olhos
da mamã, completamente desprovido da consciência de que aquele momento era irrepetível.
O momento quase palpável em que o seu sentimento por mim era tão vívido quanto aquele
azul que me mirava ou o som metálico do aro daquelas outras crianças que brincavam
lá fora e que eu via através do gradeamento de ferro da janela. Era a janela por
onde eu via o mundo, ou acaso seria uma outra. Não, era esta. Era a mesma por onde
observei o féretro do meu pai afastar-se. Era a janela por onde observei tudo até
já não ter nada que observar ou razão por que observar. Observava tudo como a um
mistério, como a alma de criança observa. Observava até que o mistério esmoreceu,
ou, porventura, a janela. A janela é hoje outra, por mais que eu tente que seja
a mesma.
Recordo
a laje da janela, era fria e eu cria. Cria em coisas que hoje já nem sei, mas
que recordo e já nem choro. Recordo as palavras que trocámos, a mamã e o seu menino,
que relaciono vagamente comigo. Essa ideia vaga é um ténue fio de Ariadne para mim
mesmo, que já alguém cortou. Recordo também com a mesma saudade as outras, as palavras
que não trocámos, mas que lhe enviei por vapores lentos percorrendo mares lentos
entre as duas grandes margens que nos apartavam. Nada regressou. Memórias, tristezas,
manhãs de luz baça após uma madrugada de chuva, o prazer de lhe ter escrito...,
tudo se perdeu. Tudo se perdeu, não no vórtice do tempo e das mudanças que tudo
suga para o fundo de um lugar sem endereço, mas simplesmente porque eram minhas.
Eram minhas as palavras e as cartas e a mamã nada guardou daquele tempo que ficou
por ter sido escrito. Por um paradoxo filial, aqui mesmo, guardo-as todas.
Guardo até hoje todas as cartas que ela me escreveu quando a nossa separação se
tornou também geográfica. Contudo, quando ela regressou a Portugal com todos os
seus haveres encerrados naqueles baús magoados de viajante perdida, a verdade
desatou-se sobre mim como uma manhã sobre a cidade: eu perdera a mamã muito cedo,
naquele dia, nos seus olhos azuis, à janela.
Nem
uma folha amarrotada, que arrependida e saudosa do filho tivesse salvado do desaparecimento
eterno, aqueles baús pesados escondiam. Não voltarei a dizer aquelas palavras
que lhe escrevi. Ninguém voltará a lê-las, a começar por ela que provavelmente nunca
as releu. Resta-me o consolo de pelo menos as ter lido. Isso já é alguma coisa.
Desde hoje estou só, escrevi eu um dia à mamã. Já vo-lo tinha dito? Escrevi-o num
dia com lágrimas em que os meus olhos me ardiam e as palavras me fugiam, mas estas
estão hoje tão mortas quanto podem estar as palavras que nunca foram lidas. Estas
palavras não morreram porque a mamã as deitou fora, estariam assim, talvez, menos
mortas, porque ao menos uma vez alguém as teria lido. As palavras estão mortas
porque nunca as enviei. Para quê enviá-las? Do que me teriam servido? Estou só e
pronto!
Que
dia é esse hoje que escrevi? O dia em que o meu pai morreu, quando eu tinha cinco
anos? Ou seria um dia do ano seguinte, quando o meu irmão morreu? Ou terá sido
quando, com sete anos, julguei que via morrer a minha pátria à medida que o vapor
se afastava do cais? Ninguém me dirá que dia foi e eu não saberei qual foi». In
Sónia Louro, Fernando Pessoa, Saída de Emergência, 2014, ISBN
978-989-637-674-1.
Cortesia
de SdeEmergência/JDACT