domingo, 26 de junho de 2016

Quando Lisboa Tremeu. 1755. Domingos Amaral. «A mão da mãe perdeu a força, o seu sorriso perdeu-se no canto dos lábios, o seu olhar perdeu-se no vazio. O rapaz implorou de novo, mas não havia nada a fazer por ela. Ficou ali uns minutos…»


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«(…) Vais deixar a tua mãezinha sozinha? O rapaz olhou à sua volta: aqui ninguém te faz mal. A mãe voltou a suspirar e disse, em voz baixa: gostas mais da tua irmã do que da tua mãezinha... O rapaz interrompeu-a: sabes bem que ela não devia ter ficado sozinha com aquele traste. A mãe lançou-lhe um olhar severo, mas baixou ainda mais a voz: olha que é pecado lançar falsos testemunhos. O meu homem não é desses! O rapaz perguntou: então, porque é que estão a demorar tanto? A mãe justificou-se: não vês que há muito movimento? É feriado, há muita gente nas ruas. Tiveram de vir devagarinho... O rapaz não ficou convencido com aqueles argumentos e começou a afastar-se. A mãe ainda perguntou: vais embora e nem me dás um beijinho? O rapaz não pareceu ouvi-la e saiu da igreja, furando entre a multidão que queria entrar para a missa. Tinha dado talvez vinte passos quando um ribombar tremendo se fez ouvir, como se fosse um trovão ou coisa assim, e as pessoas suspenderam as conversas, espantadas. De seguida, a terra começou a tremer debaixo dos pés do rapaz, numa trepidação assustadora, e um novo ruído arrepiante se ouviu, como se alguma coisa descomunal estalasse.
As pessoas gritaram, desesperadas, como se os gritos delas fossem suficientes para pôr termo ao acontecimento, mas pouco depois os gritos deixaram de se ouvir, pois o barulho da terra a tremer era tão intenso que nada mais era audível. O rapaz viu os prédios a abanarem, como se fossem canas ao vento, para cá e para lá, e alguns começaram a rachar. Fora então que olhara para trás, para a Igreja de São Vicente de Fora, e o seu coração enchera-se de pânico ao ver o tecto do edifício abater, caindo para dentro da igreja, para cima da sua mãe. Um grito nascera-lhe nos pulmões e tentou correr, mas a terra não o deixava, não havia equilíbrio, e tropeçou e caiu. Voltou a ouvir os gritos, de pavor, e vinham de todos os lados da praça, das ruas, das janelas, e também da porta da igreja, onde os fiéis estavam apinhados, uns contra os outros, como se não fossem muitos, mas apenas uma massa de gente espalmada. Depois, as portas da igreja saltaram das enormes dobradiças e tombaram sobre os infelizes que ali estavam, e viu sangue, pessoas rasgadas, sem membros, seres a morrerem num segundo.
A poeira apareceu, quase o cegando, ouviu mais estrondos e virou-se para de onde vinha o barulho e viu mais prédios a desmoronarem-se sobre as gentes, que corriam desesperadas, sem saberem para onde ir. O rapaz fez um esforço para pensar no que fazer. Voltar a entrar pela porta principal era impossível, aquilo era só mortos e escombros e aflição humana, não podia ir por ali, e lembrou-se das portas laterais e olhou para lá, mas havia demasiada poeira, não conseguia ver se o caminho estava desimpedido. Mesmo assim correu, agora que o chão parecia ter deixado de tremer. Rodeou a igreja pela esquerda, saltando por cima de infelizes que gritavam misericórdia, tentando não pisar os corpos no chão. Viu uma criança com a cabeça esmigalhada, e a seu lado uma mulher, talvez a mãe, já sem cara, só uma massa vermelha e suja. Viu homens desesperados, como ele, a quererem entrar na igreja, talvez para procurar as suas mulheres e os seus filhos, chocando com os que queriam sair, e todos lutavam uns com os outros, alucinados.
Um indivíduo, coberto de poeira e com sangue no alto da cabeça, deu uns passos na direcção do rapaz, agarrado à perna, urrando de dores, e de repente a perna cedeu, um jacto de sangue jorrou, e o homem perdeu a consciência, tombando sobre o rapaz, que não conseguiu aguentar com o peso e caiu também. O rapaz não se magoou, mas o corpo, em cima das suas costas, impedia-o de se mover. Fora nesse momento que a terra voltara a tremer. O chão onde o rapaz estava deitado abalou, com violência renovada, o barulho voltou a crescer, como se tudo à sua volta estalasse de novo e a terra se rasgasse. E então ele viu que era isso que acontecia na praça, mesmo no local onde estava há minutos. Uma enorme fenda abrira-se no chão e havia seres a deslizarem nos seus bordos, esbracejando em vão, como pequenas baratas a escorregarem numa parede gordurosa. Depois, a igreja caiu. O rapaz nem queria acreditar no que estava a acontecer! A Igreja de São Vicente de Fora, a igreja aonde a mãe estava, caíra! O tecto, as paredes, a nave central, a estrutura do edifício, caíra tudo, desmoronando-se com estrondo, num vendaval de poeira e pedras, soterrando os que estavam lá dentro. O rapaz fechou os olhos e gritou, enquanto a terra tremeu mais algum tempo, e deixou de ouvir, de pensar e de sentir. Apenas cerrou os dentes e pediu a Deus que acabasse depressa com aquilo.
Um estranho silêncio apareceu, um momento de repouso na cólica das entranhas da terra. O rapaz abriu os olhos, e tudo era escuridão, uma nuvem escura de poeira envolvia-o. Por sorte, não estava ferido. Os detritos cuspidos naquela direcção tinham atingido o homem com a perna ferida, e agora parecia morto. Tentou libertar-se e conseguiu. Levantou-se e sentiu dores nas pernas, mas não havia sangue, nem as dores eram tão intensas que o levassem a pensar que partira os ossos. Passou a mão pelas pernas e pelos pés para o confirmar. Depois, olhou para a porta lateral da igreja e soube-se afortunado. Não havia ninguém de pé, as pessoas estavam todas esmagadas pelas pedras ou pelas paredes que tinham caído em cima delas. Nascia um coro de gemidos, de sofrimentos, de moribundos, almas a sofrerem os horrores daquela violência bruta com que a terra os presenteara. O rapaz lembrou-se da mãe e recomeçou a caminhar na direcção do local onde antes existia a Igreja de São Vicente de Fora. Durante muito tempo procurou, no meio dos escombros. Encontrou-a finalmente, coberta de pó e de pedras. Estava ainda viva. O rapaz aproximou-se dela, removendo pedras, e chamou: mãe, mãe! A princípio, ela não o ouviu, nem reagiu, mas uns minutos depois gemeu. Devia estar em grande sofrimento e o rapaz percebeu que ela não conseguia falar. Mãe, sou eu..., disse-lhe. Tocou-lhe com a mão na cara, que estava fria. A mãe esboçou um sorriso. Reconhecera-o. Mãe, disse ele, vou ficar aqui até que nos venham ajudar. Não te vou deixar sozinha... Deu-lhe a mão, mas a mãe não disse nada e o rapaz sentiu o seu coração encher-se de culpa. Tinha-a deixado sozinha, uns minutos antes, e agora estava arrependido. Dissera-lhe que ali ninguém lhe fazia mal e agora a mãe estava a morrer, em agonia. Começou a implorar: desculpa, mãe, desculpa... Não morras... Mas, contou irmã Margarida com um suspiro triste, até um rapaz de doze anos sabia reconhecer a morte quando a via à sua frente. A mão da mãe perdeu a força, o seu sorriso perdeu-se no canto dos lábios, o seu olhar perdeu-se no vazio. O rapaz implorou de novo, mas não havia nada a fazer por ela. Ficou ali uns minutos, junto à mãe a quem ele recusara um último beijo em vida, e depois rezou pela sua alma. Beijou-a na cara e fez-lhe o sinal-da-cruz na testa, e quando a resolução começou a regressar-lhe ao espírito levantou-se e foi procurar a irmã gémea». In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, o Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras (Oficina do Livro), 2010, ISBN 978-972-46-1986-6.

Cortesia de Casa das Letras/JDACT