quinta-feira, 14 de julho de 2016

A Biblioteca Mágica de Bibbi Bokken. Jostein Gaarder e Klaus Hagerup. «Aqui, a aproveitar o sol de Verão bebemos Coca-colas bem geladas. Nils e Berit, nossos nomes são, e as férias ainda não estão acabadas»


jdact e wikipedia

«Querida Berit, Muito obrigado por este Verão que passamos juntos: foi fantástico. Pena que tenha acabado. Amanhã começam as aulas e, como imagina, não estou propriamente cheio de alegria. Vou encontrar aqueles ranhosos! Bom, mas o que interessa é que no próximo ano acabo e Nils Boyum vai para o segundo ciclo! Mas vamos ao que interessa. Pensei muito na ideia do epistolário e tenho que admitir, apesar de tudo, não é má de todo: escrever cartas neste caderno grosso que vamos enviando um ao outro, entre Oslo e Fjaerland, vai ser como colar fotografias num álbum, só que em vez de fotos utilizamos palavras. De repente, quando formos velhotes caducos (ah, ah) até vamos nos divertir relendo estas cartas. Se é que vamos ter algo para escrever. Tenho a impressão de que este Outono vai ser tão excitante como uma fatia de pão sem Nutella. Imagino que também aí, em Fjaerland, não vão acontecer grandes coisas. A não ser que tenham descoberto um abominável homem das neves sob a geleira de Jostedal! Bom, agora tenho de acabar. Cumprimentos da minha mãe. Espero que a tia Greta esteja se dando bem no seu novo trabalho no hotel e look forward to seeing you again, como costumam dizer nas viagens de avião. O meu pai também te mandaria um abraço mas está trabalhando na estrada com o táxi e não sabe que estou te escrevendo. E para acabar um grande abraço do teu profundamente honrado primo Nils
PS: Quase me esqueci de te contar um episódio insólito que me aconteceu quando comprei este caderno. Não o comprei em Oslo, mas em Sogndal, quando regressava de Fjaerland. Lembra-se daquela mulher estranha? De olhos enormes e com aquele livro todo rasgado que levava no saco? Estava sentada lendo o livro de visitas do refúgio de Flatbre e olhava para nós de soslaio enquanto escrevíamos a nossa poesia. A propósito, ainda se lembra dela? Eu me lembro.

Aqui, a aproveitar o sol de Verão
bebemos Coca-colas bem geladas.
Nils e Berit, nossos nomes são,
e as férias ainda não estão acabadas.
Aqui no alto há paz, tranquilidade,
não queremos voltar à cidade!

A meu ver tem um certo estilo. Mas não é da poesia que quero te falar. É da tal mulher! Quando entrei na livraria em Sogndal, ela também estava lá. Vagueava por entre as estantes observando os livros. E, Berit, se babava toda! Isso mesmo, não há outra maneira de dizer: aquela mulher vagueava pela livraria babando como se os livros fossem feitos de chocolate ou de um doce qualquer. Mas a coisa mais estranha é que, no exacto momento em que eu ia pagar o caderno, ela se aproximou de mim e perguntou se podia contribuir com uma nota de mil para o pagamento da minha despesa. Fiquei sem saber o que dizer. Fixou-me com um olhar tão terrificante que fiquei sem coragem de não aceitar. A expressão dos olhos é difícil de descrever, porém, senti-me exactamente como se eu fosse um livro aberto e ela estivesse me lendo. Não pude fazer mais nada senão aceitar o dinheiro e agradecer. E sabe o que é que ela me respondeu? Disse: eu é que tenho que agradecer! Depois, puxou um lenço, limpou os cantos da boca e desapareceu. De qualquer forma, aqui vai o caderno. Envio também uma das duas chaves. Tome cuidado para não deixá-lo aberto quando não o estiver usando. Lembre-se que é for your eyes only (só para os teus olhos). Perdoe-me pela fotografia da capa: só podia escolher entre o Sognefjord e um pôr do Sol com um coração no lugar do Sol. Qual você escolheria?
Fim da carta.

Querido primo!
Obrigada pelo epistolário que encontrei na caixa de correio e que acabo de abrir. Infelizmente, não posso te contar como vão as coisas por estas bandas porque aquilo que aconteceu hoje à tarde não me deixa pensar em mais nada. Tenho que escrever já, ainda que esteja com as mãos tremendo. Você consegue ler do mesmo jeito, não é? Trata-se da mulher misteriosa. A mesma que você encontrou em Sogndal. Ó meu Deus por onde é que começo?
Eu estava no cais de embarque quando chegou o barco das duas da tarde. Aqui, de facto, as aulas só começam na próxima segunda-feira e, por isso, não há muito o que fazer. E foi então que ela chegou, percebe? De todos os passageiros, ela foi a primeira a desembarcar. Passou ao meu lado e me deu uma olhada do tipo sei muito bem quem é você!. Ainda não tinha lido a sua carta, porém, me lembrei do encontro no refúgio de Flatbre e decidi segui-la, à distância, claro! Nem sei onde fui buscar tanta coragem. Era como se ela tivesse me hipnotizado e me obrigasse a segui-la (agora pode ver a minha mão tremendo!). Logo depois da igreja voltou-se e olhou para trás. Não tive outra escolha senão me atirar para a beira da estrada e esconder-me na valeta, e isto aconteceu várias vezes ao longo da estrada que leva até Mundalen. Mas acho que ela não me viu. Está vendo aquela cancela de madeira que se abre no muro? Pois bem, ela virou ali à direita, na direcção da casa amarela, que se encontra isolada à beira do bosque. Eu fiquei de vigia por trás do muro. E, agora, vou directa ao que interessa: no momento em que ela estava para abrir a porta vi qualquer coisa que, subitamente, caiu do seu saco. Um segundo depois ela tinha desaparecido.
Estava tão agitada que não consegui pensar em mais nada. Deve ser assim que se sente quem comete um crime pela primeira vez. De um momento para o outro, encontrei-me em frente da casa, mais ou menos como um ladrão mascarado que, de repente, salta para a varanda e grita: isto é um assalto. Bom, o meu não era bem um assalto de verdade, não gritei e nem sequer estava mascarada. No entanto, peguei o pequeno envelope e, sorrateiramente, esgueirei-me, outra vez, para trás do muro. Dentro do envelope havia uma carta e, na carta, estava escrito:
Querida Lilli,
Vagueei pela cidade a manhã inteira mas não fui capaz de encontrar aquele extraordinário antiquário. Será que fechou as portas de um dia para o outro? Só sei que se situava numa das ruelas estreitas que ficam nas proximidades da Praça Navona. Pelo menos era ali que estava no dia em que, por acaso, fui parar lá. Andava à procura de uma edição italiana do Peer Gynt mas, quando o proprietário percebeu que eu era norueguesa, chamou-me à parte, conduziu-me até uma velha estante e indicou-me um livro com uma capa diferente de todas as outras, pelo simples facto de que era nova em folha. Não tenho somente livros que já estão escritos, sussurrou, olhando-me intensamente. Eu, naturalmente, não entendia o que ele queria dizer. Foi então que tirou um livro da estante, olhou-me com atenção, como se estivesse me estudando, e esclareceu; eu também colecciono livros que, mais cedo ou mais tarde, irão ser escritos. É claro que livros deste tipo são infinitos, porém, só muito raramente me vem parar um às mãos. Depois, entregou-me o livro. Na capa figuravam altas montanhas, e o título tinha a ver com uma certa biblioteca mágica. Mas o problema não era nem a capa nem o título. O problema é que o livro é publicado em Oslo, no ano de 1993! Publicado no próximo ano, Lilli! E o velho sublinhou que se tratava de uma edição especial». In Jostein Gaarder e Klaus Hagerup, A Biblioteca Mágica de Bibbi Bokken, Companhia das Letras, Seguinte, 2003, ISBN 978-853-590-370-6.

Cortesia da CdasLetras/Seguinte/JDACT