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e wikipedia
O
corpo. A igreja. O pecado
«(…)
Bem diferente também era a noção de pudor que as viagens ultramarinas revelaram
aos europeus. Singrando mares e chegando a terras que lhes eram desconhecidas,
encontraram povos que tinham outras noções quanto à nudez, às funções corporais
ou à sexualidade. Aos olhos dos europeus, os selvagens não tinham sido
ungidos pela Graça divina. E seria considerado ofensivo colocar em dúvida os
comportamentos cristãos para seguir o exemplo de índios. Mas a diferença não
estava só entre cristãos e bárbaros. Mesmo na Europa, pudor de sentimentos e
pudor corporal tinham significados diferentes entre os diferentes grupos: ricos
ou pobres, homens ou mulheres. O banho, por exemplo. Ele gozou de grande
prestígio entre as civilizações antigas e estava associado ao prazer: vide as
termas romanas. Durante o Império, os banhos públicos multiplicaram-se e muitos
se tornaram locais de prostituição. Eram os chamados banhos bordéis,
onde as filhas do banho ofereciam seus serviços. Os primeiros cristãos, indignados
com a má frequentação, consideravam que uma mulher que fosse aos banhos poderia
ser repudiada. O código Justiniano deu respaldo à aação. Concílio após
concílio, tentava-se acabar com eles. Proibidos aos religiosos, sobretudo
quando jovens, abster-se de banho se tornou sinónimo de santidade. Santa Agnes
privou-se deles toda a vida. Ordens monásticas os proibiam aos seus monges. O
baptismo cristão, antes uma cerimónia comunitária de imersão, transformou-se
numa simples aspersão. Contudo, é importante lembrar que, apesar dos prazeres
oferecidos pela água, gestos de pudor estavam sempre presentes. Durante a Idade
Média, homens e mulheres não se banhavam juntos, salvo nos prostíbulos. Ambos
cobriam as partes pudendas. Eles, com um tipo de calção. Elas, com um vestido
fino e comprido. Regulamentos austeros coibiam horários e orientavam o uso das
estufas. Era terminantemente proibido, por exemplo, que homens entrassem nos
banhos femininos e vice-versa. Não faltam ilustrações, em miniaturas e gravuras,
sobre o voyeurismo, capaz de quebrar as severas regras que controlavam tais espaços.
Segundo alguns autores, enquanto nossos índios davam exemplo de higiene,
banhando-se nos rios, os europeus eram perseguidos pelas leis das reformas
católica e protestante que lhes interditavam nadar nus. A visão de rapazes
dentro dos rios, mergulhando ou nadando em trajes de Adão, causava escândalo,
quando não penalidades e multas. A nudez e a poligamia dos índios ajudavam a
demonizar sua imagem. Considerados não civilizados, a tentativa dos jesuítas em
cobri-los resultou, muitas vezes, em situações cómicas, como a relatada por
padre Anchieta: os índios da terra de
ordinário andam nus e quando muito vestem alguma roupa de algodão ou de pano
baixo e nisto usam de primores a seu modo, porque um dia saem com gorro,
carapuça ou chapéu na cabeça e o mais nu; outro dia saem com seus sapatos ou
botas e o mais nu.[...] e se vão passear somente com o gorro na cabeça sem
outra roupa e lhes parece que vão assim mui galantes. A discussão sobre a
nudez dos selvagens alimentava outra: o que teria vindo antes: a roupa ou o
pudor? Adão que o dissesse... Teve que se cobrir com uma folha de parreira,
assim que foi expulso do paraíso. Eis por que os missionários impunham roupas
aos índios. Inspirados pelas descobertas, vários tratados sobre indumentária e
costumes foram então escritos na Europa. A ideia era a de que se cobrissem os
nus, retirando-lhes as armas da sedução. Mas que, também, se atacasse os que se
cobriam com tecidos caros, perucas pomposas e maquilhagem, sinónimo de luxúria
e vaidade. Daí a importância da modéstia como sinónimo de pudor.
Hábitos
de higiene, hoje associados ao prazer físico, eram inexistentes. Entre os
habitantes da América portuguesa, a sujeira esteve mais presente do que a
limpeza. E isso, durante séculos. O viajante inglês John Luccock, no início do
século XIX, ainda afirmava que as abluções frequentes não eram nada apreciadas
pelos homens. Os pés são geralmente a parte mais limpa das pessoas. Os rostos,
mãos, braços, peitos e pernas que, todos eles andam muito expostos em ambos os
sexos, raramente recebem a bênção de uma lavada [...] os cubículos em que se
acham os leitos raramente são abertos à influência purificadora do ar livre,
nem tampouco expostas ao sol as camas, embora húmidas de suor. A sensibilidade
olfativa dos colonos estava longe daquela que já se instalara na Europa, que
tinha a preocupação de oxigenar os ares e de banir definitivamente o mau
cheiro. Tal movimento suscitava a intolerância em relação aos odores do corpo,
que entre nós ainda eram plenamente admitidos. Teóricos já advertiam para os
riscos de a gordura tapar os poros, retendo humores maléficos e imundícies, das
quais a pele já estava carregada. A película nauseabunda, que os antigos
acreditavam funcionar como um verniz protector contra doenças, na verdade
bloqueava as trocas aéreas necessárias ao organismo. Essa mudança provocou uma
passagem da natureza ao artifício. Os perfumes que remetiam aos odores animais,
âmbar, almíscar, saíram de moda por sua violência. Antes, as mulheres os
utilizavam, não para mascarar seu cheiro, mas para sublinhá-lo. Havia nele um
papel sexual que acentuava a ligação entre as partes íntimas e o odor. Na
Europa (dita) civilizada, a emergência de uma nova forma de pudor, porém,
ameaçava essa tradição, substituindo-a por exalações delicadas à base de
lavanda e rosas. O bidet foi então
introduzido na França, tornando-se o auxiliar do prazer. As abluções femininas
se revestiam de erotismo. Os talcos perfumados e outros pós, à base de íris,
flor de laranjeira e canela, cobriam as partes íntimas. Um simples perfume
aguçava a consciência de si, aumentando o espaço entre o próprio cheiro e o dos
outros, a multidão fedorenta. O odor forte, considerado um arcaísmo, se tornou
coisa de roceiras e prostitutas velhas. Entre nós, o âmbito da higiene íntima
feminina, de difícil pesquisa histórica, foi brevemente abordado pelo poeta
baiano Gregório Matos. No fim do século XVII, ele escreveu sobre a carga
erótica do cheiro de mulher. Sim, cheiros íntimos agradavam: o do almíscar era
um deles. O poeta criticou uma mulher que seduzira por lavar a vagina antes do acto
sexual, maldizendo as que queriam ser lavandeiras do seu cu. Certa carga de
erotismo dependia do equilíbrio entre odor e abluções, embora houvesse muitos,
como Gregório Matos, o Boca do Inferno, que preferissem o sexo feminino
recendendo a olha e sabendo o sainete. Lavai-vos, minha Babu, cada vez que vós
quiseres, cantava o poeta, já que aqui são as mulheres lavandeiras do seu cu. Lavai-vos
quando o sujeis e porque vos fique o ensaio depois de fo… lavai-o mas antes não
o laveis». In Mary del Priore, Histórias íntimas, Sexualidade e erotismo na
história do Brasil, Editora Planeta do Brasil, São Paulo, CDD-302-309-81, 2011,
ISBN 978-857-665-608-1.
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