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«É
sabido que a sociedade medieval, como patriarcal e guerreira que era,
valorizava, de forma talvez desmedida a força e a coragem físicas, a audácia, o
valor militar, isto é, os atributos considerados tipicamente masculinos e, por
isso mesmo, subalternizava todos os que com eles se não compendiavam e que,
supostamente, eram apanágio das mulheres. Por outro lado os homens medievais
desconheciam a mulher e, como tal, temiam-na: o seu corpo, as suas reacções
para eles tantas vezes incompreensíveis, a sua apregoada malignidade, o seu
poder de sedução. Mas dependiam dela para perpetuar as suas linhagens,
linhagens que se queriam continuadas, sempre, no masculino. Infelizmente para
eles e sobretudo para elas, não havia meio de saber, com certeza, se o novo ser
que chegava a casa era, de facto, filho daquele que todos consideravam seu pai.
Na verdade, é elementar que o único laço parental óbvio é o feminino.
Por
outro lado ainda, na sociedade medieval muitos homens eram celibatários por
necessidade, desde uma nobreza que não podia casar muitos dos seus filhos
segundos sob pena de fragmentar os seus bens a ponto de se tornar impossível a
manutenção do status familiar, até uma imensa massa de camponeses pobres para
quem a subsistência própria era já um problema de muito difícil e às vezes, em
tantas das várias crises depressivas que a Idade Média conheceu, impossível.
Passando por toda a gente da Igreja, na época a englobar contingentes muito
consideráveis de homens, entre clérigos seculares, monges, freires guerreiros.
Para toda esta masculinidade compulsivamente arredada do casamento a mulher só
podia constituir uma tentação muito forte que, consoante os casos, as situações
e os temperamentos, urgia alcançar ou esconjurar. Sobretudo aqueles últimos,
temerosos e conscientemente frágeis frente às mulheres encarniçaram-se contra
elas atribuindo-lhes, com cópia de argumentos, todas as culpas de que uns e
outras eram culpados. Com uma força inexcedível, na medida em que tinham por
detrás de si todo o poder da Igreja, aliado a esses outros, talvez pouco
menores, representados pela palavra oral e escrita. Deste modo a certeza da
malignidade das mulheres foi fazendo caminho nas mentalidades, criando raízes
fundas e duradoiras por toda a parte. Perante esta característica, com todas as
conotações que podiam ser-lhe atribuídas e superlativada pela imprevisibilidade
feminil, tanto, também, para temer, aliada à indispensabilidade das mulheres no
que toca à reprodução da espécie, só havia uma maneira de agir: submetê-las,
controlá-las, cercear-lhes, tanto quanto possível, qualquer poder de iniciativa.
Contudo, as mulheres não podiam ficar inactivas, ainda mesmo que o seu trabalho
fosse de todo inútil para o agregado familiar e para a comunidade mais alargada
em que se inseriam, pois só deste modo podiam libertar-se das graves tentações
a que a sua fragilidade estava sujeita. Assim, eram-lhes assinaladas as tarefas
de interior, as que as retinham em casa, as que as livravam de contactos
alargados, isolando-as. Em resumo: as que facilitavam o seu controlo e
vigilância por parte dos homens de família.
Mas,
como Eileen Power já há muito tempo deixou dito, a posição da mulher é uma
coisa em teoria, outra na situação legal e outra ainda no dia a dia. Para
começar as mulheres não podiam estar, e não estavam enclausuradas, em casa. De
acordo com o seu estatuto social e económico elas poderiam ter maior ou menor
necessidade de sair do restrito privado da sua casa, mas ainda mesmo que em
algumas circunstâncias essa necessidade, em termos práticos, fosse mínima,
havia sempre essa outra, de carácter psicológico, que dificilmente se compadece
com o enclausuramento total e prolongado, a não ser naqueles casos em que essa
pudesse ter sido a sua opção de vida. De qualquer modo haveria sempre, para a
mulher leiga, a obrigação de sair de casa e contactar com os outros no
cumprimento dos seus deveres religiosos. E depois havia, para a grande massa da
população feminina, a necessidade de trabalhar, de desenvolver um sem número de
tarefas relacionadas com o quotidiano doméstico e que decorriam fora de casa,
como o abastecimento em água e em alguns produtos alimentares, as idas e vindas
até ao forno na tarefa, ao menos semanal, de cozer o pão familiar, a lavagem da
roupa e tantas outras mais. Mas a maioria das mulheres não se ficava pelos
trabalhos domésticos e juntava-lhes muitas outras actividades. Nos meios rurais
trabalhava no campo, ao lado do marido, levava para venda no mercado citadino
alguns dos seus pequenos excedentes; entre as populações piscatórias era às
mulheres que competia a venda e a preparação, para algum tempo de conserva, do
peixe capturado pelos homens da família e esse trabalho fazia-se na rua, no
contacto com os outros; muitas mulheres, ao menos em meio urbano, desenvolviam
uma actividade profissional, na maioria dos casos no âmbito de um pequeno
comércio a retalho, o que, naturalmente, proporcionava inúmeros contactos dia a
dia repetidos. Isto é, a esfera de actividade das mulheres, de todas as
mulheres, desenvolvia-se sempre em espaços que passavam, ao menos, pela sua
aldeia, pelo seu bairro, pela sua cidade ou vila. Mas como é que essas mulheres
eram conhecidas dentro da comunidade de que faziam parte? Como é que os outros,
para lá do círculo das suas relações mais próximas, as identificavam?» In Iria
Gonçalves, Notas sobre a Identificação Social Feminina nos finais da Idade
Média, Instituto de Estudos Medievais, IEM, Ano 4, Nº 5, 2008, ISSN 1646-740X.
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