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«(…)
E senti mais curiosidade. E medo. Algo me dizia que aquele inesperado presente
não tinha chegado por acaso, que era um desafio do destino, uma vida paralela à
que eu vivia e que, como uma porta secreta, se revelava de repente, abrindo-se
à minha passagem e tentando-me a passar a ombreira escura... Tinha a intuição
de que aquele anel iria convulsionar essa vida confortável, previsível, cheia
de promessas de felicidade que começava agora a viver. Era uma ameaça, uma
tentação. Maldito anel! Tinha acabado de chegar e não me deixava dormir,
naquela que eu supunha que deveria ser uma noite feliz. Voltei a acender a luz
e dei toda a minha atenção à pedra vermelha; tinha um fullgor estranho,
interior, e formava uma estrela de seis pontas que parecia mover-se sob a
superfície, à medida que eu girava o anel, por forma a que o seu brilho de
luzeiro estivesse sempre diante dos meus olhos. Examinei a sua parte interior.
Tinha uma incrustação de marfim na base, talhada de maneira a formar um desenho
vazio no reverso do rubi, fazendo com que a luz, ao trespassar o cristal,
projectasse por trás aquela bela cruz vermelha de sangue. Bem, tinha conseguido
compreender como funcionava fisicamente aquela pequena maravilha, mas a minha
curiosidade em saber de onde vinha e por que motivo ma tinham enviado aumentava
por momentos. De imediato, os meus olhos abriram-se de espanto quando aquele pensamento
estalou na minha mente: o anel! O do rubi vermelho. Eu já o tinha visto!
Era
como uma imagem que regressava das brumas das recordações de infância; tive a
convicção, a certeza absoluta. Era capaz de o ver nalgum lugar do meu passado.
Brilhava na mão de alguém. Revirei-me na cama, inquieta. Aconteceu quando eu
era criança, em Barcelona. Disso não tenho dúvidas. Mas quem o usava?
Esforcei-me, mas não era capaz de me lembrar. Já tinha a certeza de que
provinha da minha infância, e talvez de um passado mais remoto, mas quem mo
enviava? Por que motivo? Quando alguém quer oferecer alguma coisa a outra
pessoa pelo seu aniversário não faz tanto mistério, dá-se a conhecer. Não é
verdade? Foi então que, mais uma vez, me ocorreu essa pergunta que sempre quis
fazer à minha mãe, mas nunca cheguei a formular em voz alta. Era um pequeno
enigma, uma dessas curiosidades às quais não se dá importância, mas que
continuam a zumbir baixinho nalgum recanto da mente e que, subitamente, um dia
se transformam numa total incógnita. Por que é que nunca voltámos à cidade onde
nasci?
Mudámo-nos
de Barcelona para Nova Iorque quando eu tinha treze anos. O meu pai é de
Michigan e foi, durante muitos anos, responsável pela subsidirária espanhola de
uma empresa americana. A minha mãe é filha única de uma boa família da antiga
burguesia catalã. Os meus avós paternos morreram e todos os meus parentes em
Espanha são afastados; não nos damos. Foi em Barcelona que os meus pais se
conheceram, sentiram o impulso atractivo, casaram-se e nasceu esta que agora
narra. Toda a vida o meu pai falou comigo em inglês e eu trato-o por Daddy, que
quer dizer papá, e ele trata María del Mar, a minha mãe, por Mary. Pois bem,
sempre tive intenção de perguntar a Mary por que razão nunca mais voltámos, mas
ela evitava o tema. Terá algum motivo?, perguntava-me eu.
Daddy
integrou-se muito bem no grupo de amigos da minha mãe, adora Espanha, mas
parece que era ela quem insistia em vimos viver para os Estados Unidos. E
acabou por levar a melhor; deram ao meu pai um cargo na sede empresarial em
Long Island, Nova Iorque. E nós mudámo-nos. María del Mar deixou a sua família,
os seus amigos, a sua cidade e partiu contente para a América. Nunca mais
regressámos, nem de visita. Que estranho, não é? Dei uma volta na cama e olhei
de novo para o despertador. Era já madrugada de domingo e, nesse dia, íamos
visitar os meus pais na sua casa de Long Island para festejar o meu
aniversário. Pensei que a minha mãe e eu tínhamos muito que falar. Se ela
quisesse, claro». In Jorge Molist, O Anel, Ésquilo, Lisboa, 2004, ISBN 972-860-543-9.
Cortesia
de Ésquilo/JDACT