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O que estou tentando através dessa exposição sobre a descontinuidade e a continuidade
dos seres ínfimos, engajados nos movimentos da reprodução, é sair da escuridão
em que o imenso campo do erotismo sempre esteve mergulhado. Há um segredo do
erotismo que neste momento eu me esforço por violar. Seria isto possível sem ir
primeiramente ao mais profundo, sem ir ao coração do ser? Tive de reconhecer há
pouco que as considerações sobre a reprodução dos seres ínfimos podiam passar
por insignificantes, indiferentes. Falta-lhes o sentimento de uma violência
elementar que anima, quaisquer que eles sejam, os movimentos do erotismo. Essencialmente,
o domínio do erotismo é o domínio da violência, o domínio da violação. Mas
reflitamos sobre as passagens da descontinuidade à continuidade dos seres
ínfimos. Se nos referimos à significação desses estados para nós, compreendemos
que a separação do ser da descontinuidade é sempre a mais violenta. O mais
violento para nós é a morte que, precisamente, nos arranca da obstinação que
temos de ver durar o ser descontínuo que nós somos. Desanimamos face à ideia de
que a individualidade descontínua que está em nós de repente vai acabar. Não
podemos assimilar muito simplesmente os movimentos dos animálculos engajados na
reprodução aos do nosso coração, mas, por mais ínfimos que sejam estes seres,
não podemos pensar que o ser neles se opera sem violência: é, na sua
totalidade, o ser elementar que está em jogo é a passagem da descontinuidade à continuidade.
Só a violência pode, assim, fazer tudo vir à tona, a violência e a inominável desordem
que lhe está ligada! Sem uma violação do ser constituído, que se constitui na descontinuidade,
não podemos imaginar a passagem de um estado a um outro essencialmente
distinto. Encontramos nas passagens desordenadas dos animálculos engajados na
reprodução não só o fundo de violência que nos sufoca no erotismo dos corpos,
mas também a revelação do sentido íntimo dessa violência. O que significa o erotismo
os corpos senão uma violação do ser dos parceiros, uma violação que confina com
a morte, que confina com o assassínio? Toda a concretização do erotismo tem por
fim atingir o mais íntimo do ser, no ponto em que o coração nos falta. A
passagem do estado normal ao de desejo erótico supõe em nós a dissolução
relativa do ser constituído na ordem descontínua. O termo dissolução responde à
expressão familiar de vida dissoluta, ligada à actividade erótica. No movimento
de dissolução dos seres, a parte masculina tem, em princípio, um papel activo, enquanto
a parte feminina é passiva. É essencialmente a parte passiva, feminina, que é dissolvida
enquanto ser constituído. Mas para um parceiro masculino a dissolução da parte
passiva só tem um sentido: ela prepara uma fusão onde se misturam dois seres
que ao final chegam juntos ao mesmo ponto de dissolução. Toda a concretização
erótica tem por princípio uma destruição da estrutura do ser fechado que é, no
estado normal, um parceiro do jogo.
A acção
decisiva é o desnudamento. A nudez se opõe ao estado fechado, isto é, ao estado
de existência descontínua. É um estado de comunicação que revela a busca de uma
continuidade possível do ser para além do voltar-se sobre si mesmo. Os corpos
se abrem para a continuidade através desses canais secretos que nos dão o
sentimento da obscenidade. A obscenidade significa a desordem que perturba um
estado dos corpos que estão conformes à posse de si, à posse da individualidade
durável e afirmada. Há, ao contrário, desapossamento no jogo dos órgãos que se
derramam no renovar da fusão, semelhante ao vaivém das ondas que se penetram e
se perdem uma na outra. Esse desapossamento é tão completo que no estado de
nudez, que o anuncia, e que é o seu emblema, a maior parte dos seres humanos se
esconde, mais ainda se a acção erótica, que acaba de desapossá-los, acompanha a
nudez. O desnudar-se, visto nas civilizações onde isso tem um sentido pleno, é,
quando não um simulacro, pelo menos uma equivalência sem gravidade da imolação.
Na Antiguidade, a destituição (ou a destruição) que funda o erotismo era
bastante sensível para justificar uma aproximação do acto de amor e do sacrifício.
Quando eu falar do erotismo sagrado, que diz respeito à fusão dos seres com um
além da realidade imediata, retomarei o sentido do sacrifício. Mas, desde já,
insisto no facto de que o parceiro feminino do erotismo aparecia como a vítima,
o masculino como o sacrificador, um e outro, durante a consumação, se perdendo
na continuidade estabelecida por um acto inicial de destruição.
O
que tira em parte o valor dessa comparação é a pouca gravidade da destruição de
que estamos falando. Poderíamos dizer apenas que se o elemento de violação, e
mesmo de violência, que a constitui, falha, a actividade erótica atinge com
mais dificuldade a plenitude. Entretanto, a destruição real, o acto de morrer
propriamente dito, não introduziria uma forma de erotismo mais perfeita que a
bem vaga equivalência de que falei. O facto de, em seus romances, o marquês de
Sade ver no assassínio o ápice da excitação erótica tem somente este sentido:
que, levando às últimas consequências o movimento esboçado que descrevi, não
nos afastamos necessariamente do erotismo. Há na passagem da atitude normal ao
desejo uma fascinação fundamental da morte. O que está em jogo no erotismo é sempre
uma dissolução das formas constituídas. Digo: a dissolução dessas formas de
vida social, regular, que fundam a ordem descontínua das individualidades
definidas que nós somos. Mas no erotismo, menos ainda que na reprodução, a vida
descontínua não está condenada, apesar de Sade, a desaparecer: ela está somente
posta em questão. Ela deve ser incomodada, perturbada ao máximo. Existe uma
busca de continuidade, mas em princípio somente se a continuidade, que só a
morte dos seres descontínuos estabeleceria definitivamente, não triunfar.
Trata-se de introduzir, no interior de um mundo fundado sobre a
descontinuidade, toda a continuidade de que este mundo é susceptível. A
aberração de Sade excede essa possibilidade. Ela tenta um pequeno número de
seres, e às vezes há os que vão atéa o fim. Mas, para a totalidade dos homens
normais, actos definitivos não dão senão a direcção extrema das acções
essenciais. Há um terrível excesso do movimento que nos anima: o excesso
ilumina o sentido do movimento. Mas isto é para nós apenas um signo monstruoso,
a nos lembrar constantemente que a morte, ruptura dessa descontinuidade
individual a que a angústia nos prende, se nos propõe como uma verdade mais
eminente que a vida». In Georges Bataille, O Erotismo, 1957/1968,
tradução de João Bernard Costa, L&PM Editores, 1987, Editora Antígona,
Lisboa, 1988, ISBN 978-972 608-018-3.
Cortesia
de L&PM/E Antígona/JDACT