domingo, 24 de julho de 2016

Uma Questão de Fé. A. Borges. «… toda esta loucura, toda esta fé ardente, toda esta devoção apaixonada, teria limite? É que, para a História não oficial, ficou-lhe outro cognome: “o Freirático”»

jdact

«(…) Porém, é preciso que se diga, o cumprimento da promessa parece ter sido bem recebido entre quem de direito. Depois daquele primeiro filho, João e dona Maria Ana teriam mais cinco. Alexandre, Pedro e Carlos faleceram na infância, mas o infante José sucederia no trono ao pai, dona Maria Bárbara tornar-se-ia rainha consorte de Espanha por casamento com Fernando VI; e Pedro seria Pedro III, príncipe do Brasil, rei consorte de Portugal por casamento com a sobrinha dona Maria I. Em 1716, no entanto, João V voltaria a envolver o reino numa contenda internacional. Venezianos, turcos e o papa estavam em guerra pela posse de Corfu. Respondendo a um pedido de ajuda de Sua Santidade em pessoa, o rei português envia uma poderosa esquadra comandada pelo conde do Rio Grande, que alcança uma vitória clara no cabo de Matapão. No entanto, como todos os conflitos, também este representava mais um assalto às finanças nacionais. João tinha-o aprendido cedo e por experiência própria. Então, porque voltara à guerra? Porque fora o papa que lho pedira, tocando no ponto fraco do rei absoluto: uma paixão porventura excessiva por tudo quanto dissesse respeito à Santa Madre Igreja.
Desde pequeno, João crescera num ambiente devoto. Poderia tê-lo sido ainda mais, se acaso João de Brito, padre jesuíta que fora pajem e amigo de infância de Pedro II, tivesse aceitado o convite do rei para ser preceptor do herdeiro do trono, em vez de regressar aos confins da Índia, contra todos os pedidos dos amigos e da família, onde acabaria degolado por pregar a fé cristã, séculos antes de ser canonizado, e de quem ainda hoje se conservam seminários e santuários no estado do Tamil Nadu, onde se acredita que a terra é vermelha por causa do sangue derramado por João de Brito na hora do martírio. Duma forma ou doutra, o outro João, o rei, seria sempre um crente fervoroso. A guerra por Corfu, o Convento de Mafra, a Capela de São João Baptista, o escadório do Bom Jesus e os Clérigos foram apenas os destaques duma longa lista de dispendiosas despesas em favor da Igreja. Na sequência dessa amizade e do testemunho dela dado no Matapão, Lisboa foi elevada a patriarcado em 1717, tornando-se assim Tomás Almeida, arcebispo local, num dos três patriarcas do Ocidente, em conjunto com os homólogos de Veneza e Roma. Lisboa dividiu-se, então, em duas: Oriental e Ocidental, isto é, a metropolitana e a urbe patriarcal. Para comemorar, João fez as coisas ao seu estilo: mandou remodelar e aumentar a capela real até à bizarria, adequando-a à nova dignidade da sua condição. Enriqueceu conventos com alfaias e pratas, fundou um novo, o do Louriçal, doando-lhe ainda 6000 cruzados. Pagou outros 120 000 por uma imagem benzida pelo papa, mandou 1377 cruzados para Jerusalém e criou dois bispados no Brasil. Para Roma, enviou um total de 1,38 milhões de cruzados, empregues em indulgências e processos de canonização e, na missão que lá foi assistir a um conclave, empenharam-se mais dois milhões, entre muitas outras doações de menor monta, dispersas por capelas e igrejas nacionais e estrangeiras, viagens de núncios e ofertas a cardeais.
E aqui chegamos ao centro do coração do rei magnânimo: tudo isto, toda esta loucura, toda esta fé ardente, toda esta devoção apaixonada, teria limite? É que, para a História não oficial, ficou-lhe outro cognome: o Freirático. E dona Maria Ana, ao que se sabe, engravidou aquelas seis vezes de João nas poucas vezes em que via o marido, habitualmente ausente, ocupado entre as obras do reino e os assuntos da alcova... Naqueles dias, ficaram célebres as incursões nocturnas do rei por prostíbulos e conventos, mas foi nestes últimos que, a pouco e pouco, se foi concentrando a predilecção de João. No entanto, entre os múltiplos pontos do roteiro, um foi ganhando a estima especial do monarca (a comprová-lo, existem as contas do reino: nenhum outro convento recebeu tantas dotações reais durante aqueles 44 anos): o de Odivelas, afinal, uma obra lançada pelo rei Dinis I e, portanto, com antecedentes na História não oficial do amor em Portugal». In Alexandre Borges, Histórias Secretas de Reis Portugueses, Casa das Estrelas, 2012, ISBN 978-972-46-2131-9.

Cortesia de CdasLetras/JDACT