jdact
1543.
Londres
«O
notário cheira a poeira e tinta. Latymer se pergunta porquê, quando um sentido
embota, outro fica mais aguçado. Consegue detectar o cheiro de tudo, o forte
odor de cerveja no hálito do sujeito, o aroma fermentado do pão assado na cozinha
ali em baixo, o fedor de cachorro molhado do spaniel enrolado em frente à lareira. Mas enxerga pouco, o quarto
gira e o homem é um vulto escuro inclinado sobre a cama com um sorriso que mais
parece uma careta. Ponha sua assinatura aqui, senhor, diz ele, como se falasse
com uma criança ou um idiota. Um sopro de violetas o envolve. É Katherine, sua
querida, querida Kit. Deixe-me ajudá-lo a se levantar, John, diz ela, enquanto
puxa seu corpo para a frente e coloca um travesseiro atrás. Ela o levanta
facilmente. Deve ter definhado um bocado nos últimos meses. Não é nenhuma
surpresa, dado o caroço em suas entranhas, duro e redondo como uma toranja. O
movimento desencadeia algo, uma onda insuportável que sobe por seu corpo
forçando-o a dar um grunhido desumano. Meu amor. Katherine acaricia sua testa. Seu
toque é sereno. A dor o aferroa mais fundo. Consegue ouvir o tilintar de
Katherine preparando uma tintura. A colher brilha em contacto com a luz. O frio
do metal toca seus lábios, e um fio líquido faz uma poça em sua boca. O odor argiloso
traz de volta a lembrança distante de cavalgadas na floresta e com isso uma
tristeza, pois seus dias de cavalgada acabaram. Sua garganta está inchada demais
para engolir e ele tem medo de sentir dor novamente. A dor diminuiu, mas
permanece, como o notário que se apoia alternadamente em um pé depois no outro,
envergonhado. Latymer se pergunta porque o homem não está mais acostumado a
esse tipo de coisa, uma vez que testamentos são seu meio de vida. Katherine
alisa sua garganta e a tintura desce. Logo vai fazer efeito. Sua esposa tem um
dom para remédios. Ele pensou em que tipo de poção ela poderia preparar para
libertá-lo daquela carcaça inútil. Ela saberia exactamente o que funcionaria.
Afinal, qualquer uma das plantas que usa para amortecer sua dor poderia matar
um homem com a dose certa, um pouco mais disso ou daquilo e estaria resolvido.
Mas
como pedir isso a ela? Uma pena é colocada entre seus dedos e sua mão é levada
aos papéis para que possa assinar. Seu rabisco fará de Katherine uma mulher de
posses consideráveis. Ele espera que não traga a maldição dos caçadores de
fortuna à sua porta. Ela ainda é bem jovem, com pouco mais de trinta anos, e o
carisma que o fez se apaixonar tão profundamente, já um velho viúvo, paira em volta
dela como um halo. Nunca teve a beleza ordinária das esposas dos outros homens.
Não, seus atractivos complexos floresceram com a idade. Mas Katherine é astuta
demais para se deixar levar por um sedutor eloquente de olho na fortuna de uma
viúva. Ele deve demais a ela. Quando pensa em como ela sofreu em seu nome, tem
vontade de chorar, mas seu corpo é incapaz disso. Não lhe deixou o castelo de
Snape, sua sede em Yorkshire; ela não ia querê-lo. Ficaria feliz, dissera
muitas vezes, se nunca mais tivesse que pisar lá. Snape irá para o jovem John.
O filho de Latymer não se tornou bem o homem que se esperava e ele se
perguntara com frequência que tipo de filho poderia ter com Katherine. Mas esse
pensamento é sempre obscurecido pela memória do bebé morto, a criança maldita
que fora concebida quando os rebeldes católicos saquearam Snape. Ele não suporta
imaginar como aquele bebé veio a existir, produzido por ninguém menos que
Murgatroyd, que costumava levar para caçar lebres quando criança. Era um doce
rapaz, não mostrava nenhum sinal do bruto que se tornaria. Latymer amaldiçoa o
dia em que deixou sua jovem esposa sozinha com seus filhos para ir à corte
pedir perdão ao rei, amaldiçoa antes de tudo a fraqueza que o fez se envolver
com os rebeldes. Seis anos se passaram desde então, mas os eventos daquela
época estão gravados em sua família como palavras em uma lápide. Katherine
ajeita as cobertas, cantarolando; é uma cantiga que ele não reconhece, ou não
lembra. Um repente de amor o invade. Seu casamento foi por amor, para ele, ao
menos. Mas ele não fez o que maridos devem fazer: não a protegeu. Katherine
nunca falou a respeito. Queria que ela tivesse gritado e brigado com ele, que o
tivesse odiado, culpado. Mas ela permaneceu equilibrada e contida, como se nada
tivesse mudado. E sua barriga cresceu, insultando-o. Somente quando o bebé
chegou e morreu dentro de uma hora, ele viu lágrimas marcarem seu rosto. Mesmo
então, entretanto, nada foi dito. Esse tumor, devorando-o devagar, é sua
punição, e tudo que ele pode fazer em reparação é deixá-la rica. Como pode lhe
pedir algo mais? Se ela pudesse habitar seu corpo arruinado por um instante
sequer, faria seu desejo sem questionar. Seria um acto de misericórdia, e
certamente não há pecado nisso. Ela está à porta, despedindo-se do notário,
depois flutua de volta para sentar-se ao lado dele, tira a touca e deixa-a ao
pé da cama, massageando as têmporas com as pontas dos dedos e sacudindo o
cabelo como numa tela de Ticiano.
Seu
perfume de flores secas chega até ele, que deseja afundar a cabeça nesses
cabelos como costumava fazer. Pegando um livro, ela começa a ler em voz baixa,
o latim deslizando facilmente pela língua. É Erasmo. O latim dele está enferrujado
demais para que compreenda; devia se lembrar do livro, mas não consegue. Ela
sempre fora mais educada que ele, embora fingisse o contrário, nunca fora de se
gabar. Uma batida tímida na porta os interrompe. É Meg, de mãos dadas com aquela
criada desengonçada, cujo nome lhe escapa. Pobre pequenina, desde que Murgatroyd
e seus homens vieram, ficou agitada como um potro, o que o fez pensar no que
fora feito a ela também. O pequeno spaniel
desperta, abana o rabo e agita-se freneticamente aos pés das mulheres. Pai,
murmura Meg, dando um beijo primaveril em sua testa. Como está? Ele levanta a
mão, um grande amontoado de gravetos mortos, e coloca-a sobre a mão jovem e
macia dela, tentando sorrir. Meg se dirige a Katherine, dizendo: mãe, Huicke
está aqui. Dot, Katherine diz à criada, faça o doutor entrar. Sim, senhora. Ela
vai em direcção à porta, as saias roçando. E Dot…, completa Katherine. A criada
pára à porta. … Peça a um dos rapazes para trazer mais lenha para a lareira.
Estamos queimando o último tronco. A garota assente, fazendo uma reverência. Hoje
é aniversário de Meg, John, diz Katherine. Ela faz dezassete anos. Ele se sente
impedido, quer vê-la direito, ler a expressão em seus olhos castanhos, mas os
detalhes estão borrados. Minha pequena Margaret Neville, uma mulher…, dezassete
anos. Sua voz é um grunhido. Alguém vai querer se casar com você. Um belo
jovem. A noção de que nunca conhecerá o marido da filha atinge-o como uma chapada
na cara. Meg enxuga os olhos com as mãos». In Elizabeth Fremantle, Xeque-mate da Rainha,
2013, Editora Paralela, Editora Schwarcz, 2016, ISBN 978-858-439-003-8.
Cortesia
de EParalele/ESchwarcz/JDACT