Cortesia
de wikipedia e jdact
«Eis o mundo do espectáculo em que tudo é
fantasia; mas, se você acreditar em mim, real ele se tornará»
Não se
deixe enganar pelas aparências (Aomame)
«(…)
Aomame concordou e, novamente, se recostou no assento. O jeito de o motorista
falar a incomodava. Era como se ele sempre deixasse algo muito importante por
dizer. Por exemplo (e esse é apenas um exemplo), era como se ele dissesse que
não tinha nenhuma reclamação quanto ao isolamento acústico dos carros da
Toyota, mas deixava implícito que outros requesitos ainda tinham algo a ser
melhorado. Quando ele falava, pairava no ar uma pequenina, mas significativa
massa de silêncio. Massa silenciosa a flutuar como uma minúscula nuvem
imaginária no interior do carro. E isso a deixava incomodada. Realmente. É
silencioso, disse Aomame, como que para afugentar essa pequenina nuvem. O
aparelho de som parece ser de óptima qualidade! Tive de criar coragem na hora
de comprá-lo, disse o motorista. Ele falava como um oficial aposentado do
Estado-Maior comentando sobre as estratégias de guerra do passado. Como passo
muitas horas dentro do carro, quero ouvir um bom som e... Aomame aguardou a
continuação da conversa. Mas a espera foi em vão. Ela novamente fechou os olhos
para apreciar a música. Aomame não tinha nenhuma ideia de como teria sido
Janáček pessoalmente, mas de uma coisa ela sabia: ele nunca imaginou que em
1984 alguém escutaria sua música em Tóquio, dentro de um silencioso Toyota
Crown Royal Saloon, em plena via expressa totalmente congestionada. Mas o mais
incrível era o facto de Aomame saber prontamente que a música era a Sinfonietta
de Janáček, e que havia sido composta em 1926. Ela nunca fora muito fã de
música clássica e, tampouco, tinha alguma lembrança pessoal relacionada a
Janáček. Mesmo assim, bastou ouvir os acordes iniciais para que inúmeros
conhecimentos surgissem espontaneamente. Era como uma revoada de pássaros a
adentrar pela janela aberta de um quarto. A música também provocava em Aomame
uma estranha sensação, como se estivesse sendo retorcida. Sem dor, sem
sofrimento. Uma sensação única, como se seu corpo estivesse sendo espremido
lenta e firmemente. Aomame não sabia o que estava acontecendo. Será que a
Sinfonietta é que provocava essa sensação estranha? Janáček, disse Aomame,
espontaneamente. E logo se arrependeu de tê-lo dito. O que disse? Janáček. Foi
quem compôs essa música. Nunca ouvi falar. É um compositor checo, disse Aomame.
Ah é?, exclamou o motorista, parecendo admirado. O táxi é seu?, perguntou
Aomame para mudar de assunto. É sim, respondeu o motorista e, um tempo depois,
comentou: sou autónomo e este é o meu segundo carro. É muito confortável!
Muito
obrigado. A propósito..., indagou o motorista, virando um pouco a cabeça para o
lado em que ela estava: está com pressa? Tenho um compromisso em Shibuya. Foi
por isso que pedi para o senhor pegar a via expressa. A que horas é o encontro?
Quatro e meia, respondeu Aomame. Agora são três e quarenta e cinco. Creio que
não chegaremos a tempo. O congestionamento está tão ruim assim? Parece que
houve um acidente grave lá na frente. Esse congestionamento não é normal. Já
faz um bom tempo que estamos aqui, praticamente sem sair do lugar. Aomame achou
estranho o motorista ainda não ter procurado se informar sobre o trânsito pelo
rádio. Normalmente, quando ocorre algum congestionamento que trava a via
expressa, os taxistas costumam sintonizar a rádio numa frequência especial para
obterem informações sobre o ocorrido. Dá para saber, mesmo sem ouvir as
informações do trânsito?, perguntou Aomame.
Não
se pode confiar nessas informações, respondeu o motorista, num tom de voz
imparcial. Metade do que dizem é mentira. As concessionárias que administram
essas rodovias públicas só informam o que lhes convêm. O único jeito de saber o
que realmente está acontecendo é ver com os próprios olhos e tirar suas
conclusões. Então, pelas suas conclusões, este congestionamento não vai
melhorar tão cedo. Tão cedo, acho difícil, disse o motorista, maneando
calmamente a cabeça, de modo afirmativo. Isso eu posso garantir. A via
expressa, quando está desse jeito, fica um inferno. E..., esse seu compromisso
é muito importante? Aomame pensou um pouco antes de responder: É. E muito. Vou
me encontrar com um cliente. Sinto muito, mas acho que você não vai conseguir
chegar a tempo. Dito isso, o motorista movimentou lentamente a cabeça como que
para relaxar a rigidez dos músculos. As rugas detrás do pescoço mexiam como se
fossem seres pré-históricos. Enquanto Aomame observava as rugas em movimento,
de súbito, lembrou-se de que, no fundo de sua bolsa, havia um objecto
extremamente pontiagudo. As palmas de suas mãos começaram a transpirar. Se é
assim, o que o senhor acha que devo fazer? Não há o que fazer. Estamos numa via
expressa e, até chegarmos à próxima saída, não tem jeito. Se estivéssemos numa
via comum, bastaria descer do carro e pegar o comboio na estação mais próxima».
In
Haruki Murakami, 1Q84, 2009, Alfaguara, Editora Objectiva, 2012, ISBN
978-857-962-187-1.
Cortesia de
EObjectiva/Alfaguara/JDACT