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«(…)
Localizar Gabriel Emerson e a sua família fora fácil. O professor e a mulher, Julianne,
eram os proprietários da casa que se erguia majestosamente numa colina e cujas
luzes nas janelas alegravam a escuridão. O conflito do príncipe não residia em
encontrar os Emerson ou em escapar aos braços da princesa. Não, o seu conflito
derivava de uma promessa. Raven Wood era humana, bela de uma forma não
convencional, e muito corajosa. Tinha também tendência para proteger os outros,
incluindo desconhecidos. Num momento de ternura, fizera-o prometer que pouparia
a vida dos Emerson. O príncipe fizera a promessa de boa-fé, não apenas porque
desejava que ela lhe confiasse o seu misterioso passado, mas porque gostava
dela e desejava fazê-la feliz. Mas, uma vez que Raven o deixara, tornando claro
que não podia aceitar o facto de ele ser incapaz de amar, sentia-se tentado a
recuar na sua promessa e a castigar o professor por ter tido a ousadia de se
declarar legítimo proprietário de objectos de arte roubados. O facto de o ter
feito inadvertidamente não constituía desculpa. O príncipe desejava vingança, e,
agora que o único ser humano no mundo que o podia convencer a entregar-se à
misericórdia o rejeitara, não tinha razão para não satisfazer o seu desejo. E
era por isso que se encontrava agora junto à casa, a ouvir Katherine Picton,
uma amiga da família, a dar as boas-noites aos seus anfitriões e Clare, a
pequena filha dos Emerson, a ser deitada no quarto dos pais.
Esperou
impacientemente enquanto os Emerson se entregavam ao prazer numa banheira de
hidromassagem instalada na varanda do seu quarto. O príncipe franziu o nariz, à
medida que a sua união marital se estendia indefinidamente. Parecia que, sempre
que os encontrava, estavam envolvidos em relações sexuais. Bateu com a bota no
chão, desejando que o casal se apressasse. Era uma noite sem estrelas, escura e
imóvel. O céu era um arco de veludo acima dele, e a brisa de verão
sussurrava-lhe ao ouvido. Enquanto ouvia Julianne gritar de prazer, recordou-se
de como Raven fizera a mesma coisa, enquanto ele a amava ternamente. Cerrou o
maxilar. Amor,um delicado eufemismo para a junção de corpos para prazer físico.
No entanto, não conseguia desdenhar daquela palavra quando aplicada a Raven. Passara
quase um mês desde que conhecera o prazer com uma mulher, quase um mês desde
que tivera Raven na sua cama. Ainda sentia o calor da sua pele sob as mãos, as
curvas suaves do seu corpo quando a acariciava, o cheiro do seu sangue a
encher-lhe as narinas. Mas foi a recordação dos seus olhos verdes que o manteve
imóvel enquanto Julianne beijava o marido e regressava para o seu quarto. Raven
tinha uns olhos enormes que transbordavam de sentimento. Nunca te cansas da
morte? A voz dela interrompeu-lhe os pensamentos. A verdade é que, de facto, se
cansava da morte. Naquele preciso momento, o príncipe sentia-se em conflito.
Mas calcou as suas indecisões e escalou a parede da villa, ansioso por surpreender o professor enquanto estava sozinho.
E surpreendeu-o, sem dúvida.
E
encontramo-nos de novo. O tom conversacional do príncipe contrastava com a sua
figura ameaçadora. Sobressaltado, Gabriel ergueu-se no jacuzzi, o corpo nu molhado e a brilhar à fraca luz que vinha do
quarto. O que deseja?, vociferou, cerrando as mãos. Desejo que se cubra, para
começar. O príncipe atirou uma toalha próxima ao homem, olhando-o com aversão. O
professor enrolou a toalha à volta da cintura e saiu da água. Colocou o corpo
entre o príncipe e a porta do quarto, que fechou rapidamente. Eu perguntei o
que deseja. A postura do professor era decididamente defensiva. Quero que o que
é meu permaneça na minha posse. Quero que pare de me tirar coisas e as exiba em
público como se fossem suas. O professor olhou o príncipe com incredulidade.
Não tenho nada seu. Saia. Já. O olhar do príncipe desviou-se rapidamente por
cima do ombro do professor e viu, do outro lado da janela, Julianne a aninhar a
filha nos braços. Tem muitas riquezas. Seria melhor cuidar delas e não ir atrás
do que não lhe pertence. O professor franziu o sobrolho. Peço-lhe, novamente,
que saia. O ser sobrenatural abanou a cabeça, olhando o homem com os frios olhos
cinzentos. Disseram-me que tem dificuldade em seguir instruções. Estou a ver
que é verdade. Eu mandei-o sair. Também não me parece estar a ouvir, replicou o
professor. O senhor roubou as minhas ilustrações. Ao primeiro som de protesto
do professor, o príncipe ergueu uma mão para o silenciar. Sei que não as roubou
pessoalmente. Mas as ilustrações pertenciam-me, antes de caírem nas mãos da
família suíça que lhas vendeu. Recuperei-as e vão ficar comigo. Para sempre. O
senhor está a mentir. As ilustrações estavam naquela família há quase um século».
In
Sylvain Reynard, Uma Sombra sobre Florença, 2016, Edições Chá das Cinco, Saída
de Emergência, 2016, ISBN 978-989-710-241-7.
Cortesia de
ECdasCinco/SdeEmergência/JDACT