quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Uma Sombra sobre Florença. Sylvain Reynard. «Mas foi a recordação dos seus olhos verdes que o manteve imóvel enquanto Julianne beijava o marido e regressava para o seu quarto. Raven tinha uns olhos enormes que transbordavam de sentimento»

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«(…) Localizar Gabriel Emerson e a sua família fora fácil. O professor e a mulher, Julianne, eram os proprietários da casa que se erguia majestosamente numa colina e cujas luzes nas janelas alegravam a escuridão. O conflito do príncipe não residia em encontrar os Emerson ou em escapar aos braços da princesa. Não, o seu conflito derivava de uma promessa. Raven Wood era humana, bela de uma forma não convencional, e muito corajosa. Tinha também tendência para proteger os outros, incluindo desconhecidos. Num momento de ternura, fizera-o prometer que pouparia a vida dos Emerson. O príncipe fizera a promessa de boa-fé, não apenas porque desejava que ela lhe confiasse o seu misterioso passado, mas porque gostava dela e desejava fazê-la feliz. Mas, uma vez que Raven o deixara, tornando claro que não podia aceitar o facto de ele ser incapaz de amar, sentia-se tentado a recuar na sua promessa e a castigar o professor por ter tido a ousadia de se declarar legítimo proprietário de objectos de arte roubados. O facto de o ter feito inadvertidamente não constituía desculpa. O príncipe desejava vingança, e, agora que o único ser humano no mundo que o podia convencer a entregar-se à misericórdia o rejeitara, não tinha razão para não satisfazer o seu desejo. E era por isso que se encontrava agora junto à casa, a ouvir Katherine Picton, uma amiga da família, a dar as boas-noites aos seus anfitriões e Clare, a pequena filha dos Emerson, a ser deitada no quarto dos pais.
Esperou impacientemente enquanto os Emerson se entregavam ao prazer numa banheira de hidromassagem instalada na varanda do seu quarto. O príncipe franziu o nariz, à medida que a sua união marital se estendia indefinidamente. Parecia que, sempre que os encontrava, estavam envolvidos em relações sexuais. Bateu com a bota no chão, desejando que o casal se apressasse. Era uma noite sem estrelas, escura e imóvel. O céu era um arco de veludo acima dele, e a brisa de verão sussurrava-lhe ao ouvido. Enquanto ouvia Julianne gritar de prazer, recordou-se de como Raven fizera a mesma coisa, enquanto ele a amava ternamente. Cerrou o maxilar. Amor,um delicado eufemismo para a junção de corpos para prazer físico. No entanto, não conseguia desdenhar daquela palavra quando aplicada a Raven. Passara quase um mês desde que conhecera o prazer com uma mulher, quase um mês desde que tivera Raven na sua cama. Ainda sentia o calor da sua pele sob as mãos, as curvas suaves do seu corpo quando a acariciava, o cheiro do seu sangue a encher-lhe as narinas. Mas foi a recordação dos seus olhos verdes que o manteve imóvel enquanto Julianne beijava o marido e regressava para o seu quarto. Raven tinha uns olhos enormes que transbordavam de sentimento. Nunca te cansas da morte? A voz dela interrompeu-lhe os pensamentos. A verdade é que, de facto, se cansava da morte. Naquele preciso momento, o príncipe sentia-se em conflito. Mas calcou as suas indecisões e escalou a parede da villa, ansioso por surpreender o professor enquanto estava sozinho. E surpreendeu-o, sem dúvida.
E encontramo-nos de novo. O tom conversacional do príncipe contrastava com a sua figura ameaçadora. Sobressaltado, Gabriel ergueu-se no jacuzzi, o corpo nu molhado e a brilhar à fraca luz que vinha do quarto. O que deseja?, vociferou, cerrando as mãos. Desejo que se cubra, para começar. O príncipe atirou uma toalha próxima ao homem, olhando-o com aversão. O professor enrolou a toalha à volta da cintura e saiu da água. Colocou o corpo entre o príncipe e a porta do quarto, que fechou rapidamente. Eu perguntei o que deseja. A postura do professor era decididamente defensiva. Quero que o que é meu permaneça na minha posse. Quero que pare de me tirar coisas e as exiba em público como se fossem suas. O professor olhou o príncipe com incredulidade. Não tenho nada seu. Saia. Já. O olhar do príncipe desviou-se rapidamente por cima do ombro do professor e viu, do outro lado da janela, Julianne a aninhar a filha nos braços. Tem muitas riquezas. Seria melhor cuidar delas e não ir atrás do que não lhe pertence. O professor franziu o sobrolho. Peço-lhe, novamente, que saia. O ser sobrenatural abanou a cabeça, olhando o homem com os frios olhos cinzentos. Disseram-me que tem dificuldade em seguir instruções. Estou a ver que é verdade. Eu mandei-o sair. Também não me parece estar a ouvir, replicou o professor. O senhor roubou as minhas ilustrações. Ao primeiro som de protesto do professor, o príncipe ergueu uma mão para o silenciar. Sei que não as roubou pessoalmente. Mas as ilustrações pertenciam-me, antes de caírem nas mãos da família suíça que lhas vendeu. Recuperei-as e vão ficar comigo. Para sempre. O senhor está a mentir. As ilustrações estavam naquela família há quase um século». In Sylvain Reynard, Uma Sombra sobre Florença, 2016, Edições Chá das Cinco, Saída de Emergência, 2016, ISBN 978-989-710-241-7.

Cortesia de ECdasCinco/SdeEmergência/JDACT