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Maio
de 1517 a Junho de 1522
«(…)
Então ele aconchegou-a ternamente na curva do braço, mas sem deixar de olhar
para ela de sobrolho franzido. Então?, perguntou. Honor olhou para ele de
braços cruzados. Vim chamar-te! Enão percebo por que estás tão zangado por eu
ter vindo salvar-te. Salvar-me?, protestou ele. Sim. o senhor Ellsworth disse
que te esfolava vivo se descobrisse que tu tinhas saído de casa. Ellsworth era
o camareiro do pai dela e Honor tinha-o visto a andar pela casa depois da hora
de recolher, a ver se faltava algum criado, batendo com o bastão ritmadamente
contra a canela, um gesto que não augurava nada de bom. Estava furioso. E eu
sabia que tu tinhas saído. Esta tarde, ouvi-te à porta, a combinar com o
aprendiz do padeiro que te encontravas com ele debaixo da tabuleta do
Ploughman's Rest. Quer dizer que fugiu da cama, que escapou à velha Margaret e
veio ao Ploughman's..., por. minha causa? Foi, mas perdi-me. Honor mordeu o
lábio, recordando as horas assustadoras que passara às voltas, a multidão, as
chamas, o homem de cabelos brancos caindo lá do alto ao encontro da morre. Oh,
Ralph..., prosseguiu, tentando evitar que as lágrimas lhe corressem. Eu tinha
visto o bastão do senhor Ellsworth...
Ralph
já tinha deixado de franzir o sobrolho, embora continuasse a dirigir-se a ela
em tom severo. O senhor Ellsworth e o bastão dele são o meu destino, menina. E,
fazendo-lhe uma festa no queixo com a mão calosa, sorriu. Mas só um
coraçãozinho muito doce e corajoso podia levá-la a fazer o que fez. Ela
correspondeu àquele sorriso, que adorava. Ora bem, disse ele, desencostando-se
da parede, temos de a meter outra vez na sua cama, se não a Margaret, que
ressona tão alto que chega a acordar com o barulho, apanha um susto se não a
vir. Depois abanou a cabeça, soltando um assobio entredentes. Mas se calhar é
melhor metê-la primeiro num balde de água, que eu nunca vi tanta lama junta em
cima de uma pessoa tão pequena. Ela olhou para Cheapside, aonde o brilho das
tochas se repartia, entrando parte dele naquela viela. E também se ouviam
gritos. Ralph olhou para trás por cima do ombro, e franziu o sobrolho como quem
rejeitasse igualmente essa hipótese.
As
vielas estão cheias de piolhosos, murmurou. Voltando a olhar para Cheapside,
cerrou os dentes e, apertando Honor contra si com um dos braços, desembainhou o
punhal e avançou a passo firme na direcção da luz das tochas. Imediatamente
antes de chegarem ao cruzamento, deteve-se e ocultou-se nas sombras. Honor
remexeu-se para ver o que se passava. Viam-se dois grupos, medindo-se mutuamente
como exércitos num campo de batalha. Um deles, uma turba de vinte e poucos
aprendizes, jovens entre os catorze e os vinte anos, escarnecia do outro, uma
delegação das autoridades. Por detrás das portadas semiabertas das janelas que
davam para a rua, viam-se velas acesas, barretes de dormir e rostos assustados.
A delegação da cidade era constituída por três magistrados a cavalo, três homens
de aspecto muito pouco eficaz, a despeito dos veludos de qualidade que envergavam,
protegidos por uma dúzia de soldados a pé, com chuços. Diante dos soldados,
apresentavam-se mais dois oficiais a cavalo: um sargento da guarda, um homem
grisalho usando meia armadura, e um homem de meia-idade e cabelo escuro,
desarmado e vestido à paisana. A espada e a couraça do sargento brilhavam acima
das tochas da multidão. Volto a avisar-vos, berrou o sargento à turba de
rapazes, de que estão a violar a lei. Para o diabo o recolher obrigatório,
gritou um aprendiz. Isso não é lei nenhuma.
Furioso,
o sargento apontou o polegar para o homem à paisana que estava ao seu lado. Quem
me diz o que é lei e o que não é lei não é a ralé, é aqui o subdelegado, mestre
Thomas More. Vamos embora, ponham-se a andar! Se não, ainda vão acabar
pendurados numa forca! Um jovem que empunhava uma moca suja de sangue
destacou-se da multidão e aproximou-se do cavalo do sargento. Então e as nossas
razões de queixa? E os estrangeiros? Há por aí centenas de malandros, que nos arrancam
o pão da boca. Isso, baliu outro do meio do grupo. E um emprestador de Mântua, maldito
seja ele, chupou o meu chefe com juros de quinze por cento. Eles infectam a
cidade com a peste e a paralisia, berrou para trás, para os colegas, o jovem
que se tinha aproximado do cavalo. Vamos pegar-lhes fogo às tocas!» In
Barbara Kyle, A Aia da Rainha, 2008, tradução de Maria José Figueiredo, Planeta
Manuscrito, 2009/2010, Lisboa, ISBN 978-989-657-058-3.
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