quarta-feira, 17 de agosto de 2016

A Aia da Rainha. Barbara Kyle. «Quem me diz o que é lei e o que não é lei não é a ralé, é aqui o subdelegado, mestre Thomas More. Vamos embora, ponham-se a andar!»

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Maio de 1517 a Junho de 1522
«(…) Então ele aconchegou-a ternamente na curva do braço, mas sem deixar de olhar para ela de sobrolho franzido. Então?, perguntou. Honor olhou para ele de braços cruzados. Vim chamar-te! Enão percebo por que estás tão zangado por eu ter vindo salvar-te. Salvar-me?, protestou ele. Sim. o senhor Ellsworth disse que te esfolava vivo se descobrisse que tu tinhas saído de casa. Ellsworth era o camareiro do pai dela e Honor tinha-o visto a andar pela casa depois da hora de recolher, a ver se faltava algum criado, batendo com o bastão ritmadamente contra a canela, um gesto que não augurava nada de bom. Estava furioso. E eu sabia que tu tinhas saído. Esta tarde, ouvi-te à porta, a combinar com o aprendiz do padeiro que te encontravas com ele debaixo da tabuleta do Ploughman's Rest. Quer dizer que fugiu da cama, que escapou à velha Margaret e veio ao Ploughman's..., por. minha causa? Foi, mas perdi-me. Honor mordeu o lábio, recordando as horas assustadoras que passara às voltas, a multidão, as chamas, o homem de cabelos brancos caindo lá do alto ao encontro da morre. Oh, Ralph..., prosseguiu, tentando evitar que as lágrimas lhe corressem. Eu tinha visto o bastão do senhor Ellsworth...
Ralph já tinha deixado de franzir o sobrolho, embora continuasse a dirigir-se a ela em tom severo. O senhor Ellsworth e o bastão dele são o meu destino, menina. E, fazendo-lhe uma festa no queixo com a mão calosa, sorriu. Mas só um coraçãozinho muito doce e corajoso podia levá-la a fazer o que fez. Ela correspondeu àquele sorriso, que adorava. Ora bem, disse ele, desencostando-se da parede, temos de a meter outra vez na sua cama, se não a Margaret, que ressona tão alto que chega a acordar com o barulho, apanha um susto se não a vir. Depois abanou a cabeça, soltando um assobio entredentes. Mas se calhar é melhor metê-la primeiro num balde de água, que eu nunca vi tanta lama junta em cima de uma pessoa tão pequena. Ela olhou para Cheapside, aonde o brilho das tochas se repartia, entrando parte dele naquela viela. E também se ouviam gritos. Ralph olhou para trás por cima do ombro, e franziu o sobrolho como quem rejeitasse igualmente essa hipótese.
As vielas estão cheias de piolhosos, murmurou. Voltando a olhar para Cheapside, cerrou os dentes e, apertando Honor contra si com um dos braços, desembainhou o punhal e avançou a passo firme na direcção da luz das tochas. Imediatamente antes de chegarem ao cruzamento, deteve-se e ocultou-se nas sombras. Honor remexeu-se para ver o que se passava. Viam-se dois grupos, medindo-se mutuamente como exércitos num campo de batalha. Um deles, uma turba de vinte e poucos aprendizes, jovens entre os catorze e os vinte anos, escarnecia do outro, uma delegação das autoridades. Por detrás das portadas semiabertas das janelas que davam para a rua, viam-se velas acesas, barretes de dormir e rostos assustados. A delegação da cidade era constituída por três magistrados a cavalo, três homens de aspecto muito pouco eficaz, a despeito dos veludos de qualidade que envergavam, protegidos por uma dúzia de soldados a pé, com chuços. Diante dos soldados, apresentavam-se mais dois oficiais a cavalo: um sargento da guarda, um homem grisalho usando meia armadura, e um homem de meia-idade e cabelo escuro, desarmado e vestido à paisana. A espada e a couraça do sargento brilhavam acima das tochas da multidão. Volto a avisar-vos, berrou o sargento à turba de rapazes, de que estão a violar a lei. Para o diabo o recolher obrigatório, gritou um aprendiz. Isso não é lei nenhuma.
Furioso, o sargento apontou o polegar para o homem à paisana que estava ao seu lado. Quem me diz o que é lei e o que não é lei não é a ralé, é aqui o subdelegado, mestre Thomas More. Vamos embora, ponham-se a andar! Se não, ainda vão acabar pendurados numa forca! Um jovem que empunhava uma moca suja de sangue destacou-se da multidão e aproximou-se do cavalo do sargento. Então e as nossas razões de queixa? E os estrangeiros? Há por aí centenas de malandros, que nos arrancam o pão da boca. Isso, baliu outro do meio do grupo. E um emprestador de Mântua, maldito seja ele, chupou o meu chefe com juros de quinze por cento. Eles infectam a cidade com a peste e a paralisia, berrou para trás, para os colegas, o jovem que se tinha aproximado do cavalo. Vamos pegar-lhes fogo às tocas!» In Barbara Kyle, A Aia da Rainha, 2008, tradução de Maria José Figueiredo, Planeta Manuscrito, 2009/2010, Lisboa, ISBN 978-989-657-058-3.

Cortesia de PlanetaM/JDACT