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O
Verão de 1899
«(…)
Estava paralisado, incapaz de mexer as pernas, incapaz de pronunciar uma só
palavra que fosse e, tal como o indicavam os seus olhos, os minutos que passava
em estado de consciência eram gastos a implorar a Alá para que este pusesse fim
à sua presença neste mundo. Alá ignorou as suas súplicas e, aos poucos, Iskander
Pasha começou a recuperar. A vida regressou às suas pernas. Com a ajuda de
Petrossian, recomeçou a andar, mas o dom da fala desaparecera para sempre.
Nunca mais voltaríamos a escutar a sua voz. De então em diante, os seus pedidos
e ordens passaram a ser escritos em pequenos pedaços de papel, os quais não
eram levados numa pequena bandeja de prata.
Assim,
todos os dias, depois da refeição do fim da tarde, reuníamo-nos em grupo no
velho quarto com a varanda sobranceira ao mar. Uma vez confortavelmente
instalados, o meu pai beberricava um pouco de chá pelo canto da boca, a
trombose afectara-lhe cruelmente o rosto e, enquanto o neto de Petrossian, Akim,
lhe ia massajando os pés com suavidade, ele recostava-se e insistia connosco
para que lhe contássemos histórias. Sempre me fora difícil mostrar-me
descontraída na presença do meu pai. Ele sempre se mostrara um homem exigente.
Extremamente intolerante Para com a mais pequena crítica ao seu comportamento,
passado ou presente, encontrava sempre defeitos nos outros.
Os
meus irmãos e a minha irmã, que haviam sido convocados para junto do seu leito
vindos de diferentes áreas do Império, mostravam-se convencidos de que a doença
o transformaria em alguém menos intolerante. Eu tinha a certeza de que eles
estavam enganados.
A
melancolia de Salman
Estava
deitada na cama num quarto às escuras, uma compressa fria a cobrir-me o rosto e
a testa. Estava a descansar, tentando acalmar uma forte dor de cabeça que
teimava em não se ir embora. Foi no dia em que Salman e Halil chegaram, para
verem o nosso pai. Eu não me encontrava no terraço, junto com o resto da
família e todos os criados, para os ver sair do nosso velho coche, que,
flanqueado de ambos os lados por seis soldados de cavalaria, os transportara desde
Istambul. posteriormente, a minha mãe contou-me o quanto a imagem do meu pai,
sentado imóvel numa grande cadeira, os abalou. Ambos se deixaram cair de
joelhos, cada um do seu lado da cadeira, e beijaram-lhe as mãos. Foi Halil, no
seu uniforme de general, o primeiro a compreender que os silêncios depressa se
podem tornar opressivos.
Sinto-me
muito feliz por ainda estar vivo, Ata.
Ninguém me poderia ter ajudado se Alá tivesse decidido fazer de nós órfãos. Este
bruto do meu irmão teria dado ordens a Petrossian para que me estrangulasse com
uma corda de seda. A ideia era de tal forma ridícula que o rosto do velhote se iluminou
com um sorriso, um sinal para a ruidosa gargalhada que varreu toda a assembleia
e me acordou bruscamente. Contudo, a dor de cabeça desaparecera e eu levantei-me
da cama de um salto, humedeci o rosto com água e desci as escadas a correr para
os cumprimentar. Cheguei a tempo de ver Halil apertar Orhan nos braços. Fez
cócegas com o seu bigode no pescoço do rapaz e em seguida atirou-o ao ar,
abraçando-o com carinho assim que ele voltava a descer. Depois apresentou Orhan
ao tio que ele nunca vira. O meu filho fitou o novo tio com um sorriso tímido
e, desajeitado, Salman deu uma palmadinha na cabeça do rapaz». In
Tariq Ali, A Mulher de Pedra, 2000, tradução de Lucília Rodrigues, Publicações
Europa América, Contemporânea, 2002/2003, ISBN 972-105-125-X.
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