Cortesia
de wikipedia e jdact
Crónicas
afectivas
«A
música veio mesmo a calhar, pois ando com uma fome de arte, ando com saudades
da beleza, ando com saudade de tudo, saudade de alguma delicadeza, paz, pois já
não aguuento mais ser apenas uma esponja absorvendo e comentando os bodes
pretos que os políticos produzem no Brasil e o Bush lá fora. Ando meio
desesperançado, mas essa canção de Rita trouxe de volta a minha mais antiga lembrança
de amor. Isso mesmo: a canção me trouxe uma cena que, há mais de 50 anos, me
volta sempre. Sempre achei que esse primeiro momento foi tão ténue, tão fugaz,
que não merecia narração. Mas vou tentar. Eu devia ter uns seis anos, no
máximo. Foi meu primeiro dia de aula no colégio, lá no Méier, onde minha mãe me
levou, pela rua 24 de Maio, coberta de folhas de mangueira que o vento
derrubava. Fiquei sozinho, desamparado, sem pai nem mãe no colégio
desconhecido. No pátio do recreio, crianças corriam. Uma bola de borracha voou
em minha direcção e bateu em meu peito. Olhei e vi uma menina morena, de
tranças, com olhos negros, bem perto, me pedindo a bola e, nesse segundo, eu me
apaixonei. Lembro-me que seu queixo tinha um pequeno machucado, como um
arranhão com mercurocromo, lembro-me que ela tinha um nariz arrebitado,
insolente e que, num lampejo, eu senti um tremor desconhecido, logo interrompido
pelo jogo, pela bola que eu devolvi, pelos gritos e correria do recreio. Ela
deve ter me olhado no fundo dos olhos por uns três segundos mas, até hoje, eu
me lembro exactamente de sua expressão afogueada e vi que ela sentira também
algum sinal no corpo, alguma informação do seu destino sexual de fêmea, alguma
manifestação da matéria, alguma mensagem do DNA. Recordando minha impressão de
menino, tenho certeza de que nossos olhos viram a mesma coisa, um no outro.
Senti que eu fazia parte de um magnetismo da natureza que me envolvia, que
envolvia a menina, que alguma coisa vibrava entre nós e senti que eu tinha um
destino ligado àquele tipo de ser, gente que usava trança, que ria com dentes
brancos e lábios vermelhos, que era diferente de mim, e entendi vagamente que,
sem aquela diferença, eu não me completaria. Ela voltou correndo para o jogo,
vi suas pernas correndo e ela se virando com uma última olhada.
Misteriosamente, nunca mais a encontrei naquela escola. Lembro-me que me
lembrei dela quando vi aquele filme Love Story, não pelo medíocre filme, mas
pelo rosto de Ali McGraw, que era exactamente o rosto que vivia na minha
memória. Recordo também, com estranheza, que meu sentimento infantil foi de
impossibilidade; aquele rosto me pareceu maravilhoso e impossível de ser
atingido inteiramente, foi um instante mágico ao mesmo tempo de descoberta e de
perda. Escrevendo agora, percebo que aquela sensação de profundo sentido que
tive aos seis anos pode ter marcado minha maneira de ser e de amar pelos tempos
que viriam. Senti a presença de algo belíssimo e inapreensível que, hoje, velho
de guerra, arrisco dizer que talvez seja essa a marca do amor: ser impossível.
Calma, pessoal, claro que o amor existe, nem eu sou um masoquista de livro, mas
a marca do sublime, o momento em que o impossível parece possível, onde o
impalpável fica compreensível, esse instante se repetiu no futuro por minha
vida, levando-me para um trem-fantasma de alegrias e dores. Amar é parecido com
sofrer, Luiz Melodia escreveu, não foi? Machado Assis toca nisso na súbita
consciência do amor entre Bentinho e Capitu: todo eu era olhos e coração, um
coração que desta vez ia sair, com certeza, pela boca. Isso: felicidade e medo,
a sensação de tocar por instantes um mistério sempre movente, como um fotograma
que para por um instante e logo se move na continuação do filme. Sempre senti
isso em cada visão de mulheres que amei: um rosto se erguendo da areia da
praia, uma mulher fingindo não me ver, mas vendo-me de costas num escritório do
Rio... São momentos em que a máquina da vida parece se explicar, como se fosse
uma lembrança do futuro, como se eu me lembrasse ali do que iria viver. Esses
frémitos de amor acontecem quando o eu cessa, por brevíssimos instantes,
e deixamos o outro ser o que é em sua total solidão. Vemos um gesto frágil, um
cabelo molhado, um rosto dormindo, e isso desperta em nós uma espécie de
compaixão pelo nosso próprio desamparo, entrevisto no outro. A cultura
americana está criando um desencantamento insuportável na vida social. Vejam a
arte tratada como algo desnecessário, sem lugar, vejam as mulheres nuas
amontoadas na Internet. Andamos com fome de beleza em tudo, na vida, na
política, no sexo; por isso, o amor é uma ilusão sem a qual não podemos viver.
Todas essas ténues considerações, essas lembranças de lembranças, essa
tentativa de capturar lampejos tão antigos, com risco de ser piegas, tudo isso
me veio à cabeça pela emoção de me ver subitamente numa música, parceiro de
Rita Lee, lovely Rita, a mais completa tradução de São Paulo, essa cidade cheia
de famintos de amor». In Arnaldo Jabor, Amor é prosa Sexo é poesia,
Editora Objectiva, 2004, ISBN 978-857-302-644-8
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