quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Astúrias. José Javier Esparza. «Quem seria Cristuévalo, o de Brañosera? Como morreram os desditados cujos corpos se encontraram na gruta da Foradada?»

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«Pese a quem pesar, a Reconquista e um dos processos mais fascinantes da história universal. Nenhum território ocupado pelo islão, depois da sua prodigiosa expansão nos séculos VII e VIII foi capaz de expulsar os invasores. Nenhum, excepto a Península Ibérica. Naturalmente, pode discutir-se a qualidade exacta dessa reconquista, incluindo a propriedade do termo, mas o processo histórico foi o que foi: a partir de 711, e como consequência de uma invasão externa, a Espanha islamizou-se; após vários séculos de avanço cristão, num clima geral de guerra e com poucos períodos de paz, o islão acabaria por ser expulso em 1492. Foi isso a Reconquista. Como começou tudo? Onde? Porquê? Tudo começou num pequeno rincão do norte de Espanha, em redor de Cangas de Onís, nas Astúrias. A partir de um núcleo minúsculo de resistência rural, limitado a uns quantos camponeses e guerreiros, asnos selvagens, foi como lhes chamaram depreciativamente as crónicas muçulmanas, constituiu-se um espaço político precário, mas decidido a sobreviver. Esse espaço, convertido em reino, ampliou-se de imediato à Cantábria e em seguida à Galiza. Assim nasceu o reino das Astúrias, sem outro motor que a vontade de não se curvar perante o poder muçulmano e sem mais elemento de união que a cruz. O que se propõe contar é isso, como tudo começou. Trata-se de narrar a vida do reino das Astúrias. Duzentos anos desde a batalha de Covadonga, em 722, até. à sua transformação no reino de Leão, na segunda metade do século X. É uma história que já foi contada muitas vezes e que ocupou algumas das melhores cabeças da historiografia espanhola, desde Sánchez Albornoz até Luis Suárez, passando por Menéndez Pidal e Julio Valdeón, para reduzir a quatro nomes uma lista que, com justiça, deveria ser muito mais ampla. Foi contada muitas vezes, sim, mas parece que hoje está esquecida, particularmente pelas gerações mais jovens. Por isso, vale a pena contar tudo outra vez. E, pois bem, que contar? Tudo quanto for possível. A peripécia do reino das Astúrias é uma façanha assombrosa. Aquela gente, encerrado num enclave minúsculo, com escasso poder militar e de economia rudimentar, teve de fazer frente a um inimigo extraordinariamente poderoso, cuja vontade de dominação se apoiava em recursos abundantes e numa determinação religiosa implacável. Aos rebeldes cristãos do norte. esperavam-nos tempos trágicos, duríssimos, submetidos vezes sem conta às campanhas de saque muçulmanas (as aceifas) que assolavam os campos e semeavam a escravidão e a morte, e isso ano após ano, sem qualquer trégua. É objectivamente inconcebível que, pese a sua clara inferioridade, o reino das Astúrias conseguisse sobreviver, mas conseguiu. E não só conseguiu sobreviver, como pouco a pouco foi incorporando outros povos cristãos do friso cantábrico. E não apenas isso, como também, depois, começou a aventurar-se para sul da cordilheira para repovoar as terras planas. E não apenas isso, como também, mais tarde, conseguiu manter o controlo do inimigo muçulmano e inclusivamente inflingir-lhe sérias derrotas. Como foi possível semelhante prodígio? É muito interessante tratar de nos metermos na cabeça das grandes personagens daquele tempo, dos reis e dos condes e dos bispos, que iam deixando o seu nome nos alvores da Reconquista. A historiografia tradicional colocou cada um no seu lugar e brinda-nos hoje com um fresco particularmente vivo desses dois séculos de aventura e tragédia. Mas, naquele tempo e naquele lugar, não havia apenas reis, condes e bispos, mas também um povo que escrevia a história com o sulco profundo dos seus arados. A vida desse povo parece-nos mais obscura porque as fontes históricas fixam-se sempre mais nos grandes nomes do que nos pequenos. Porém, há indícios suficientes para reconstruir a sua peripécia naqueles séculos da origem, e o que podemos adivinhar é comovedor. Os indícios são, a saber: diplomas de remotas fundações monacais que nos falam de pioneiros em vales expostos ao perigo mouro, testemunhos do favor régio para premiar o heroísmo deste ou daquele colono, foros que organizaram pela primeira vez a vida dos residentes como homens livres num espaço novo, igrejas rústicas que clérigos obscuros construíram com as próprias mãos, dezenas de cadáveres emparedado numa gruta dos Pirenéus, documentos que nos falam de litígios e pleitos por causa de terras e montes... E, além disso, o que as crónicas, cristãs e mouras, nos contam. Há muitas formas possíveis de contar a vida do reino das Astúrias, o início da Reconquista, mas, de todas elas, talvez a mais sugestiva seja debruçarmo-nos sobre a vida daquelas gentes, dos pequenos nomes. Quem seria Cristuévalo, o de Brañosera? Como morreram os desditados cujos corpos se encontraram na gruta da Foradada?» In José Javier Esparza, Astúrias, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2016, ISBN 978-989-626-773-5.

Cortesia EdosLivros/JDACT