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«Pese
a quem pesar, a Reconquista e um dos processos mais fascinantes da história
universal. Nenhum território ocupado pelo islão, depois da sua prodigiosa
expansão nos séculos VII e VIII foi capaz de expulsar os invasores. Nenhum,
excepto a Península Ibérica. Naturalmente, pode discutir-se a qualidade exacta
dessa reconquista, incluindo a propriedade do termo, mas o processo
histórico foi o que foi: a partir de 711, e como consequência de uma invasão
externa, a Espanha islamizou-se; após vários séculos de avanço cristão, num clima
geral de guerra e com poucos períodos de paz, o islão acabaria por ser expulso
em 1492. Foi isso a Reconquista. Como começou tudo? Onde? Porquê? Tudo começou
num pequeno rincão do norte de Espanha, em redor de Cangas de Onís, nas
Astúrias. A partir de um núcleo minúsculo de resistência rural, limitado a uns quantos
camponeses e guerreiros, asnos selvagens, foi como lhes chamaram
depreciativamente as crónicas muçulmanas, constituiu-se um espaço político
precário, mas decidido a sobreviver. Esse espaço, convertido em reino,
ampliou-se de imediato à Cantábria e em seguida à Galiza. Assim nasceu o reino
das Astúrias, sem outro motor que a vontade de não se curvar perante o poder
muçulmano e sem mais elemento de união que a cruz. O que se propõe contar é
isso, como tudo começou. Trata-se de narrar a vida do reino das Astúrias.
Duzentos anos desde a batalha de Covadonga, em 722, até. à sua transformação no
reino de Leão, na segunda metade do século X. É uma história que já foi contada
muitas vezes e que ocupou algumas das melhores cabeças da historiografia
espanhola, desde Sánchez Albornoz até Luis Suárez, passando por Menéndez Pidal e
Julio Valdeón, para reduzir a quatro nomes uma lista que, com justiça, deveria
ser muito mais ampla. Foi contada muitas vezes, sim, mas parece que hoje está
esquecida, particularmente pelas gerações mais jovens. Por isso, vale a pena
contar tudo outra vez. E, pois bem, que contar? Tudo quanto for possível. A
peripécia do reino das Astúrias é uma façanha assombrosa. Aquela gente, encerrado
num enclave minúsculo, com escasso poder militar e de economia rudimentar, teve
de fazer frente a um inimigo extraordinariamente poderoso, cuja vontade de
dominação se apoiava em recursos abundantes e numa determinação religiosa
implacável. Aos rebeldes cristãos do norte. esperavam-nos tempos trágicos,
duríssimos, submetidos vezes sem conta às campanhas de saque muçulmanas (as aceifas) que assolavam os campos e
semeavam a escravidão e a morte, e isso ano após ano, sem qualquer trégua. É
objectivamente inconcebível que, pese a sua clara inferioridade, o reino das
Astúrias conseguisse sobreviver, mas conseguiu. E não só conseguiu sobreviver, como
pouco a pouco foi incorporando outros povos cristãos do friso cantábrico. E não
apenas isso, como também, depois, começou a aventurar-se para sul da
cordilheira para repovoar as terras planas. E não apenas isso, como também,
mais tarde, conseguiu manter o controlo do inimigo muçulmano e inclusivamente
inflingir-lhe sérias derrotas. Como foi possível semelhante prodígio? É muito
interessante tratar de nos metermos na cabeça das grandes personagens daquele
tempo, dos reis e dos condes e dos bispos, que iam deixando o seu nome nos
alvores da Reconquista. A historiografia tradicional colocou cada um no seu
lugar e brinda-nos hoje com um fresco particularmente vivo desses dois séculos
de aventura e tragédia. Mas, naquele tempo e naquele lugar, não havia apenas
reis, condes e bispos, mas também um povo que escrevia a história com o sulco profundo
dos seus arados. A vida desse povo parece-nos mais obscura porque as fontes
históricas fixam-se sempre mais nos grandes nomes do que nos pequenos. Porém,
há indícios suficientes para reconstruir a sua peripécia naqueles séculos da
origem, e o que podemos adivinhar é comovedor. Os indícios são, a saber: diplomas
de remotas fundações monacais que nos falam de pioneiros em vales expostos ao
perigo mouro, testemunhos do favor régio para premiar o heroísmo deste ou
daquele colono, foros que organizaram pela primeira vez a vida dos residentes como
homens livres num espaço novo, igrejas rústicas que clérigos obscuros
construíram com as próprias mãos, dezenas de cadáveres emparedado numa gruta
dos Pirenéus, documentos que nos falam de litígios e pleitos por causa de
terras e montes... E, além disso, o que as crónicas, cristãs e mouras, nos
contam. Há muitas formas possíveis de contar a vida do reino das Astúrias, o
início da Reconquista, mas, de todas elas, talvez a mais sugestiva seja debruçarmo-nos
sobre a vida daquelas gentes, dos pequenos nomes. Quem seria Cristuévalo, o de
Brañosera? Como morreram os desditados cujos corpos se encontraram na gruta da
Foradada?» In José Javier Esparza, Astúrias, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2016,
ISBN 978-989-626-773-5.
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