Cortesia
de wikipedia e jdact
«Não
me lembro de enigma mais arrevesado e perigoso do que aquele que me coube resolver
naquele Ano-Novo de 1497, enquanto os Estados Pontifícios observavam como o
ducado de Ludovico Sforza, o Mouro,
estremecia de dor. O mundo era então um lugar hostil, variável, um inferno de
areias movediças no qual quinze séculos de cultura e fé ameaçavam desmoronar
sob a avalanche de novas ideias importadas do Oriente. Da noite para o dia, a
Grécia de Platão, o Egipto de Cleópatra ou as extravagâncias da China explorada
por Marco Polo mereciam mais aplausos que nossa própria história bíblica. Aqueles
foram dias turbulentos para a cristandade. Tínhamos um papa simoníaco, um diabo
espanhol coroado sob o nome de Alexandre VI, que havia comprado com descaro sua
tiara no último conclave, uns príncipes subjugados pela beleza do pagão e uma
maré de turcos armados até aos dentes à espera de uma boa oportunidade para
invadir o Mediterrâneo ocidental e converter todos nós ao islamismo.
Poder-se-ia dizer que jamais nossa fé estivera tão indefesa em seus quase 1.500
anos de história. E ali estava este servo de Deus que vos escreve. Assimilando
um século de mudanças, uma época na qual o mundo estendia diariamente suas
fronteiras e exigia de nós um esforço de adaptação sem precedentes. Era como
se, a cada dia que passava, a Terra se tornasse cada vez maior, forçando-nos a
uma atualização permanente de nossos conhecimentos geográficos. Nós, clérigos,
já intuíamos que não íamos dar conta de pregar para um mundo povoado por
milhões de almas que jamais haviam ouvido falar de Cristo, e os mais cépticos
vaticinavam um período de caos iminente, que seria trazido à Europa pela
chegada de uma nova horda de pagãos.
Apesar
de tudo, foram anos excitantes. Anos que contemplo com certa saudade na
velhice, neste exílio que devora pouco a pouco minha saúde e minhas lembranças.
Minhas mãos já quase não me respondem, minha vista fraqueja, o sol cegante do
sul do Egipto turva minha mente e só nas horas que precedem o alvorecer sou
capaz de ordenar meus pensamentos e reflectir sobre o tipo
de destino que me trouxe até aqui. Um destino que nem Platão, nem Alexandre VI,
nem os pagãos desconhecem. Mas, não vou antecipar os acontecimentos. Basta
dizer que agora, por fim, estou sozinho. Dos secretários
que um dia tive não resta mais nenhum, e hoje só Abdul, um jovem que não fala
meu idioma e que me julga um santarrão excêntrico que veio morrer em sua terra,
atende a minhas necessidades mais elementares. Vivo isolado neste antigo túmulo
escavado na rocha, cercado de pó e areia, ameaçado pelos escorpiões e quase
inválido das duas pernas. Todos os dias o fiel Abdul traz até
este cubículo um pão ázimo e o que sobra em sua casa. Ele é como o corvo que
durante sessenta anos levou em seu bico meia onça de pão para Paulo, o Eremita, que morreu com mais de 100
anos nestas mesmas terras. Abdul, diferente daquele pássaro de bom augúrio,
sorri quando me entrega a comida, sem saber muito bem que mais fazer. É suficiente.
Para alguém que pecou tanto como eu, toda contemplação se transforma em um prémio
inesperado do Criador. Mas, além da solidão, também o dó acabou corroendo minha
alma. Lamento que Abdul nunca venha a saber o que me trouxe à sua aldeia. Eu
não saberia lhe explicar por sinais. Também ele jamais poderá ler estas linhas,
e, ainda no remoto caso de que as encontre após minha morte e as venda para
algum cameleiro, duvido que sirvam para algo mais que atiçar uma fogueira nas
frias noites do deserto. Ninguém aqui entende latim nem língua românica alguma.
E cada vez que Abdul me encontra diante destas páginas dá de ombros, atónito,
sabendo que está perdendo algo importante. Essa ideia me tortura dia a dia. A
certeza íntima de que nenhum cristão jamais chegará a ler estas páginas
ataranta minha lucidez e enche meus olhos de lágrimas. Quando acabar de
redigi-las, pedirei que as enterrem junto com meus despojos, esperando que o
anjo da morte se lembre de recolhê-las e levá-las perante o Pai Eterno quando
se celebrar o julgamento de minha alma. Triste é a história: os maiores segredos
são os que nunca vêm à luz. Conseguirá o meu? Duvido.
Aqui,
nas grutas que chamam de Yabal al-Tarif, a poucos passos deste grande Nilo que
abençoa com suas águas um deserto inóspito e vazio, só rogo a Deus que me dê
tempo suficiente para justificar por escrito meus actos. Estou tão longe dos privilégios
que um dia tive em Roma que, mesmo que o novo papa me perdoasse, sei que já não
seria capaz de voltar ao rebanho de Deus. Eu não suportaria deixar de escutar
os distantes lamentos dos muezins em seus minaretes, e a saudade desta terra
que me acolheu com tanta generosidade torturaria meus últimos dias. Meu consolo
é ordenar aqueles acontecimentos tal como ocorreram. Alguns eu vivi em minha
carne. De outros, porém, tive notícia muito tempo depois de ocorridos. Contudo,
colocados um após o outro, vos darão uma ideia da magnitude do enigma que
alterou minha existência. Não. Não posso mais dar as costas ao destino. E,
agora que reflecti sobre tudo o que meus olhos
viram, vejo-me na obrigação de contar…, ainda que não sirva a ninguém». In Javier
Sierra, A Ceia Secreta, 2013, Editora Planeta, 2014, ISBN 978-854-220-327-1.
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