quarta-feira, 24 de agosto de 2016

O Reino dos Sonhos. Exército Negro. Santiago Garcia Clairac. «Vejo-o ao fundo da sala, inclinado sobre a grande mesa de madeira, rodeado de livros e de folhas de papel, segurando na pena com firmeza, falando sozinho, ou com os livros, que é quase a mesma coisa»

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A Fundação. Arquimaes, o sábio dos sábios
«(…) Um leve sorriso indica que ele compreendeu a minha mensagem. Sem dizer mais nada, roda nos calcanhares e começa a subir as escadas. Sombra é como se fosse o meu segundo pai, se bem que às vezes tenho a sensação de que ele me compreende melhor. É uma personagem especial. Que tenhas um bom dia, deseja-me enquanto se afasta, arrastando a sua vassoura. Detenho-me no segundo andar e entro na biblioteca principal. Há ali grandes estantes repletas de volumes extraordinários e irrepetíveis que temos vindo a coleccionar desde há imensos anos. A Fundação é uma extraordinária biblioteca cheia de livros sobre a Idade Média. Passei aqui a maior parte da minha vida. Este é o meu mundo. Aproximo-me de uma prateleira e coloco o livro de Artur no seu sítio. Antes de sair, procuro outro sobre a rainha Ginevra que já li muitas vezes e meto-o na minha pasta. A sua história apaixona-me e propus-me escrever um conto com essas personagens..., dentro de alguns anos.
Logo depois, entro no gabinete do papá. Vejo-o ao fundo da sala, inclinado sobre a grande mesa de madeira, rodeado de livros e de folhas de papel, segurando na pena com firmeza, falando sozinho, ou com os livros, que é quase a mesma coisa. Está com um aspecto horrível. Parece um desses sábios que aparecem nas histórias de fantasia, com o cabelo revolto e uma barba de vários dias, febril e embrenhado na sua actividade, como se não houvesse mais nada no mundo; alheio ao que se passa em seu redor. Papá, como estás?, pergunto-lhe, aproximando-me. Um pouco surpreendido pela minha presença, ele levanta a cabeça e olha para mim: Arturo, filho, que fazes aqui a uma hora destas? Papá, são quase nove horas... Já amanheceu. Como uma criança que foi apanhada a fazer alguma travessura, o meu pai levanta-se e corre os grandes cortinados da janela. Uma cascata de luz branca que o ofusca entra violentamente e obriga-o a proteger os olhos. Estou bem, filho. De verdade. Ontem à noite tinhas febre. Deverias tomar alguma coisa, ou vais piorar.
Não precisas preocupar-te. Eu estou bem. Além disso, agora não posso ficar doente, pois tenho de terminar este trabalho... Estou prestes a chegar ao fim! Gostaria de saber sobre que trata esse trabalho de investigação que andas a fazer há tanto tempo, interessei-me. Quando tiver algo de concreto para explicar, asseguro-te que serás o primeiro a sabê-lo. Prometes? Prometo, filho, prometo. Papá, fico preocupado ao ver-te ofuscado e transtornado com este assunto. É como..., como se estivesses a ficar louco. O meu pai levanta-se e afaga-me a cabeça, coisa que faz sempre que quer falar comigo. Em seguida, passa a mão sobre as manchas que tenho na cara, como se tentasse apagá-las. Arturo, não estou louco; eu sei que pareço, mas não estou. Não deves pensar isso.
Eu sei, mas as pessoas normais não se comportam dessa maneira. Escuta, filho, nós sabemos coisas que as outras pessoas ignoram. Não somos bruxos, nem magos... Somos estudiosos e investigadores. Sabemos que neste mundo existem forças desconhecidas que agem sobre nós sem que possamos impedi-lo. E já sabes também que não me refiro a feitiçaria, nem nada dessas coisas; falo do que pensamos, do que sentimos e do que sabemos. E tudo isso está aqui!, diz ele levantando a mão e apontando para as estantes de madeira, repletas de exemplares. Tudo isso está nos livros! Não estás a exagerar um pouco, papá? O que não está nos livros não existe, disse ele com uma firmeza que me assombra. O que não está escrito nos livros não é digno de menção. Os livros são a alma e a memória do mundo. Não me atrevo a discutir. Sei de sobra que a paixão do meu pai pelos livros supera qualquer argumento. Vive por e para os livros...» In Santiago Garcia Clairac, O Reino dos Sonhos, O Exército Negro, 2006, tradução de Ana Maria Silva, Planeta Manuscritos, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-657-020-0.

Cortesia de PlanetaM/JDACT