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O
inglês
«Francesca
viu a obra de Caravaggio pela primeira vez quando tinha onze anos de idade.
Fora na igreja de San Luigi dei Francesi, situada a curta distância da Piazza
Navona. Aos domingos à tarde, o seu pai, um contabilista que trabalhava num
escritório de advogados, costumava levá-la e às duas irmãs, envergando vestidos
próprios para visitas à igreja, a passear pela cidade. Costumavam visitar as
ruínas do Fórum ou os quadros e esculturas numa das grandiosas galerias ou
igrejas da cidade. Francesca, a primogénita, costumava fazer um jogo, tentando
associar os quadros aos artistas antes de consultar as informações. Com o
passar do tempo, acabaria por conhecer os nomes dos mestres da Renascença e do
Barroco italiano tal como os rapazes conhecem os nomes e as estatísticas dos
futebolistas profissionais. Tinha bem presente o seu primeiro encontro com Caravaggio,
um marco de luz brilhante na sua memória. As três telas conhecidas como o ciclo
de Mateus jaziam nos recônditos da penumbra da igreja, na extremidade
oposta da nave, num recesso designado por Cappella Contarelli. Pairava no ar um
odor a fumo de velas e incenso. Uma luz pálida era filtrada para o interior da
capela por um vitral semicircular quase opaco devido à poeira e à sujidade. No
tempo de Caravaggio, a luz tremeluzente das velas teria iluminado a capela. Nos
seus tempos de menina, para se obter iluminação, era necessário inserir uma
moeda numa caixa. Quando a luz acendia, Francesca sentia-se como se tivesse deixado
a igreja e estivesse no teatro. Os três quadros pareciam respirar, emanar calor
e vida, captando um momento temporal como uma cena vislumbrada através da
vidraça. Permanecia com as mãos pousadas no mármore frio e macio da capela,
petrificada pelas ilustrações da vida de Mateus. O que mais a cativava era o
quadro A Vocação de S. Mateus, que retratava uma cena passada numa taberna
romana idêntica às que Caravaggio teria frequentado, com bancos de madeira e
uma mesa decrépita, também ela de madeira, enquanto a luz do dia penetrava por
uma porta entreaberta, incidindo sobre uma velha parede de estuque e repousando
sobre o cobrador de impostos que viria a ser santificado. Mais tarde, quando
começou a estudar História da Arte, Francesca ficou a saber que Caravaggio
pintara o seu auto-retrato entre as figuras que se encontravam ao fundo d'O
Martírio de S. Mateus. Tinha vinte e nove anos nessa altura, mas no
quadro parecia mais velho, de barba, testa enrugada, a boca contorcida num esgar
de consternação, os olhos repletos de angústia. A obra que ilustra S. Mateus, o
seu primeiro trabalho público, trouxera-lhe fama e fortuna. Dez anos mais
tarde, viria a morrer só, abandonado, em estranhas circunstâncias.
A
investigação relativa às origens dos dois quadros de S. João ocupou Francesca e
Laura todo aquele Inverno e parte da Primavera. Trabalhavam bem em equipa,
apesar de adoptarem tácticas diferentes. Certa vez em que estabelecera uma
comparação entre ambas, Correale afirmara sobre Francesca: é inteligente e
intuitiva, mas assemelha-se a um cavalo de corrida em estado de agitação.
Quanto a Laura: é metódica e científica, mais parecida com a mula que puxa o
arado. Lautr fora a primeira da sua família a frequentar a universidade. Era
baixa, atarracada e tinha uma pronúncia vincadamente romana, típica da classe
operária, que não fazia qualquer esforço por atenuar. Tinha modos rudes e
directos. Os pequenos trejeitos, os gracejos astuciosos, que são a essência da
maioria das interacções sociais, eram-lhe estranhos. Eu tento ser educada, dizia
de si mesma, mas, mesmo que não diga o que me vai na alma, não o consigo
dissimular. Ambas haviam concluído o bacharelato na Universidade de Roma com as
notas mais altas. Ambas tinham conseguido publicar a tese de final de curso no
prestigiado jornal de arte Storia dell'Arte. Haviam integrado o programa
de licenciatura, a especialização, como lhe chamam, no mesmo dia, e frequentado
as mesmas disciplinas. Desenvolveu-se uma amizade entre ambas, mas daquelas
amizades que se limitam às aulas e ao trabalho». In Jonathan Harr, A Obra Prima
Desaparecida, 2005, Editorial Presença, Lisboa, 2006, ISBN 978-972-233-676-2.
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