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Eram os meus melhores companheiros... E no entanto, era-me fácil, ainda sem o
desejar nem promover, atrair as pessoas e criar amigos. Além da minha afabilidade
e desinibição, que me tornavam capaz de abordar os outros, até os mais severos,
com naturalidade e desenvoltura, concorria para isso a minha própria aparência
externa, que logo ao primeiro relance chamava as atenções. Eu bem o sentia e
bem mo faziam sentir as moças quando eu passava na rua: olá, lourinho! Ai que azadinho,
mulher! Estás a ver aquele que ali vai? Que belo marido vai dar!, e Deus me
perdoe se me não envaidecia... A altura bem proporcionada do corpo, os cabelos
de um loiro de espiga fartamente anelados e que a tesoura do barbeiro, não sei
por que bulas, respeitava quando era desapiedada para com os outros rapazes que
deixava quase carecas, as feições regulares animadas por uns olhos de um
verde-azul-claro, transparente, e por uns lábios em cuja comissura se esboçava
o sorriso que a todo o momento se esperava ver desabrochar, o que de antemão predispunha
os outros à simpatia. Estas características corporais contrastavam de tal
maneira com as dos meus companheiros, geralmente meãos, senão atarracados,
trigueiros, cabelos negros a denotar o sangue das raças autóctones,
mediterrânicas, africanas, tornavam-se, nesse cotejo, de tal jeito raras ou
inesperadas que naturalmente a sua existência ou insuspeitada e súbita revelação
despertavam nos espíritos, até no meu, interrogações que só com o tempo porventura
alguém ousaria formular. Os da minha idade rodeavam-me, gostavam de sentar-se
ao pé de mim, disputavam-me para seu parceiro nos jogos do recreio, elegiam-me
seu chefe natural; os mais velhos sentiam-se importantes e intimamente envaidecidos
se me tomavam sob a sua protecção; os superiores tratavam-me com deferência e
se, pelas minhas diabruras, tinham de me castigar, faziam-no com uma bonomia
que retirava ao castigo grande parte da sua rudeza e mo fazia assumir...,
sorrindo.
Entre
os meus amigos recentes havia um jovem postulante que desde logo se aproximara
de mim, numa hora de descanso ao ar livre, me levara a passear pela quinta do
convento com seus talhões de terra muito bem alinhados e aproveitados. Aqui as alfaces,
cujo verde-claro e viçoso realçava com a bordadura das couves azuladas. Ali e
além o cebolo, o faval, a salsa. Após a horta uma vasta área perfumada de
árvores de espinho, mancha de verde pespontado de amarelo, onde cantavam melros
e cotovias. O franciscano não quer riqueza, pôs-se o postulante a falar, num tom
sentencioso, usando por vezes palavras menos costumadas e metáforas triviais,
dir-se-ia que gostava de se ouvir. Como a ave do céu, bebe a gota de água que
Deus lhe atira da nuvem e, levada na asa do vento, ele recolhe na fresca
cisterna, ou caída na terra a dessedenta, se aprofunda nela e vai brotar de uma
frincha da rocha, encetando, fio de ouro a reverberar ao sol, sua longa
caminhada. O franciscano sustentava-se, estava eu a entender?, dos frutos ubérrimos
da terra-mãe e, agradecido, esbatendo-se na natureza como um seu humílimo
elemento, cantava louvores a Deus pelas suas dádivas... As visitas à horta e ao
pomar do convento ajudaram-me, nessa tenra idade, a tomar gosto por tudo o que
era nascença e fruto natural e pelos nomes que se lhes dava. Este atento exame do
pormenor e do particular dá forma desde logo a uma das minhas tendências:
adquiri cedo um espírito propenso à análise. Mais tarde, com as viagens e com
as leituras de obras ecuménicas que revelavam, em amplo panorama, os actos
importantes que se estavam a passar no mundo, completei esse meu pendor com o
justo remate da síntese. Sentados por momentos à sombra das laranjeiras,
sorvendo o suco refrescante dos seus amarelos pomos sumarentos, o meu amigo
contava-me estar aguardando que os superiores, o capítulo, dessem o ámen ao seu
ingresso no noviciado. Era um primeiro passo difícil na sua vida, não estava a ver?,
quase tão importante como depois, mais tarde, quando fizesse os votos e se
tornasse monge confesso. Ah! Mas ele estava firmemente decidido, a sua vocação,
não tinha dúvidas, era segura...
E tu
queres ser franciscano?, perguntava ele. E dentro de mim soava e reboava e
tocava a rebate aquele queres. Dava-me conta de que, ainda que não quisesse, não
tinha querer. Sabia que não queria e, de súbito, caía sobre mim a evidência de
que tinha de querer o que não queria, de que não era senhor de mim, de que a
minha vida era guiada e destinada por alguém, de que nem ao menos conhecia a
quem pudesse gritar que não queria. Sentia-me dependente de um ser invisível.
Quem mandava em mim? De quem era eu? Olhava em volta. De quem eram eles, os
meus companheiros?... Ser de, naquela idade, não era afinal coisa de somenos.
Perguntado, o meu amigo contou-me que tinha saído de casa com a anuência e
compreensão de seu pai e com as lágrimas da mãe. Como ficasse por instantes com
a voz embargada, calou-se. Senti que aquele era para ambos um assunto
melindroso e desviei a conversa para ponto que mais me interessava e
perguntei-lhe se conhecia São Pantaleão. Que não, que não conhecia, mas o
missal referia o santo de cada dia e ele podia procurar, ou ver em algum
hagiológio como os Legenda Aurea, de Voragine, ou no Flos Sanctorum.
Pedi-lhe que o fizesse com toda a cautela e discrição e referi-lhe o suficiente
das minhas apreensões para que ele o levasse a peito. Estivesse descansado que
logo ia deitar mãos à obra!... Daí a dias veio ter comigo, estampada no rosto a
expressão do maior assombro. Não havia nenhum São Pantaleão! Nem no missal, nem
em Voragine, nem no Flos Sanctorum... Fiquei perplexo. Conversámos algum
tempo sobre aquele insólito facto de eu trazer ao peito uma relíquia de um
santo que não existia. Depois calámo-nos, com uma enjoativa sensação de medo,
que nos fazia arrepiar-se a pele, de estarmos a caminhar em terreno perigoso, a
tocar em arcanos que não deveriam ser sondados. Os nossos receios não eram
infundados, pois não tardaram a surgir sinais de que não era desejada tão
chegada amizade e comércio com a minha pessoa. O meu amigo, nas horas a que
habitualmente nos poderíamos encontrar, era subitamente afastado com tarefas
que pareciam ocorrer por acaso, até que totalmente o deixei de ver. Chegou-me
ao conhecimento que haviam considerado não ter ele suficiente vocação para
ingressar no noviciado, pelo que teve de abandonar o convento sem poder sequer
despedir-se de mim». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel,
1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia
de Difel/Alfaguara/JDACT