quarta-feira, 10 de agosto de 2016

A Casa do Pó. Fernando Campos. «E tu queres ser franciscano?, perguntava ele. E dentro de mim soava e reboava e tocava a rebate aquele queres. Dava-me conta de que, ainda que não quisesse, não tinha querer»

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«(…) Eram os meus melhores companheiros... E no entanto, era-me fácil, ainda sem o desejar nem promover, atrair as pessoas e criar amigos. Além da minha afabilidade e desinibição, que me tornavam capaz de abordar os outros, até os mais severos, com naturalidade e desenvoltura, concorria para isso a minha própria aparência externa, que logo ao primeiro relance chamava as atenções. Eu bem o sentia e bem mo faziam sentir as moças quando eu passava na rua: olá, lourinho! Ai que azadinho, mulher! Estás a ver aquele que ali vai? Que belo marido vai dar!, e Deus me perdoe se me não envaidecia... A altura bem proporcionada do corpo, os cabelos de um loiro de espiga fartamente anelados e que a tesoura do barbeiro, não sei por que bulas, respeitava quando era desapiedada para com os outros rapazes que deixava quase carecas, as feições regulares animadas por uns olhos de um verde-azul-claro, transparente, e por uns lábios em cuja comissura se esboçava o sorriso que a todo o momento se esperava ver desabrochar, o que de antemão predispunha os outros à simpatia. Estas características corporais contrastavam de tal maneira com as dos meus companheiros, geralmente meãos, senão atarracados, trigueiros, cabelos negros a denotar o sangue das raças autóctones, mediterrânicas, africanas, tornavam-se, nesse cotejo, de tal jeito raras ou inesperadas que naturalmente a sua existência ou insuspeitada e súbita revelação despertavam nos espíritos, até no meu, interrogações que só com o tempo porventura alguém ousaria formular. Os da minha idade rodeavam-me, gostavam de sentar-se ao pé de mim, disputavam-me para seu parceiro nos jogos do recreio, elegiam-me seu chefe natural; os mais velhos sentiam-se importantes e intimamente envaidecidos se me tomavam sob a sua protecção; os superiores tratavam-me com deferência e se, pelas minhas diabruras, tinham de me castigar, faziam-no com uma bonomia que retirava ao castigo grande parte da sua rudeza e mo fazia assumir..., sorrindo.
Entre os meus amigos recentes havia um jovem postulante que desde logo se aproximara de mim, numa hora de descanso ao ar livre, me levara a passear pela quinta do convento com seus talhões de terra muito bem alinhados e aproveitados. Aqui as alfaces, cujo verde-claro e viçoso realçava com a bordadura das couves azuladas. Ali e além o cebolo, o faval, a salsa. Após a horta uma vasta área perfumada de árvores de espinho, mancha de verde pespontado de amarelo, onde cantavam melros e cotovias. O franciscano não quer riqueza, pôs-se o postulante a falar, num tom sentencioso, usando por vezes palavras menos costumadas e metáforas triviais, dir-se-ia que gostava de se ouvir. Como a ave do céu, bebe a gota de água que Deus lhe atira da nuvem e, levada na asa do vento, ele recolhe na fresca cisterna, ou caída na terra a dessedenta, se aprofunda nela e vai brotar de uma frincha da rocha, encetando, fio de ouro a reverberar ao sol, sua longa caminhada. O franciscano sustentava-se, estava eu a entender?, dos frutos ubérrimos da terra-mãe e, agradecido, esbatendo-se na natureza como um seu humílimo elemento, cantava louvores a Deus pelas suas dádivas... As visitas à horta e ao pomar do convento ajudaram-me, nessa tenra idade, a tomar gosto por tudo o que era nascença e fruto natural e pelos nomes que se lhes dava. Este atento exame do pormenor e do particular dá forma desde logo a uma das minhas tendências: adquiri cedo um espírito propenso à análise. Mais tarde, com as viagens e com as leituras de obras ecuménicas que revelavam, em amplo panorama, os actos importantes que se estavam a passar no mundo, completei esse meu pendor com o justo remate da síntese. Sentados por momentos à sombra das laranjeiras, sorvendo o suco refrescante dos seus amarelos pomos sumarentos, o meu amigo contava-me estar aguardando que os superiores, o capítulo, dessem o ámen ao seu ingresso no noviciado. Era um primeiro passo difícil na sua vida, não estava a ver?, quase tão importante como depois, mais tarde, quando fizesse os votos e se tornasse monge confesso. Ah! Mas ele estava firmemente decidido, a sua vocação, não tinha dúvidas, era segura...
E tu queres ser franciscano?, perguntava ele. E dentro de mim soava e reboava e tocava a rebate aquele queres. Dava-me conta de que, ainda que não quisesse, não tinha querer. Sabia que não queria e, de súbito, caía sobre mim a evidência de que tinha de querer o que não queria, de que não era senhor de mim, de que a minha vida era guiada e destinada por alguém, de que nem ao menos conhecia a quem pudesse gritar que não queria. Sentia-me dependente de um ser invisível. Quem mandava em mim? De quem era eu? Olhava em volta. De quem eram eles, os meus companheiros?... Ser de, naquela idade, não era afinal coisa de somenos. Perguntado, o meu amigo contou-me que tinha saído de casa com a anuência e compreensão de seu pai e com as lágrimas da mãe. Como ficasse por instantes com a voz embargada, calou-se. Senti que aquele era para ambos um assunto melindroso e desviei a conversa para ponto que mais me interessava e perguntei-lhe se conhecia São Pantaleão. Que não, que não conhecia, mas o missal referia o santo de cada dia e ele podia procurar, ou ver em algum hagiológio como os Legenda Aurea, de Voragine, ou no Flos Sanctorum. Pedi-lhe que o fizesse com toda a cautela e discrição e referi-lhe o suficiente das minhas apreensões para que ele o levasse a peito. Estivesse descansado que logo ia deitar mãos à obra!... Daí a dias veio ter comigo, estampada no rosto a expressão do maior assombro. Não havia nenhum São Pantaleão! Nem no missal, nem em Voragine, nem no Flos Sanctorum... Fiquei perplexo. Conversámos algum tempo sobre aquele insólito facto de eu trazer ao peito uma relíquia de um santo que não existia. Depois calámo-nos, com uma enjoativa sensação de medo, que nos fazia arrepiar-se a pele, de estarmos a caminhar em terreno perigoso, a tocar em arcanos que não deveriam ser sondados. Os nossos receios não eram infundados, pois não tardaram a surgir sinais de que não era desejada tão chegada amizade e comércio com a minha pessoa. O meu amigo, nas horas a que habitualmente nos poderíamos encontrar, era subitamente afastado com tarefas que pareciam ocorrer por acaso, até que totalmente o deixei de ver. Chegou-me ao conhecimento que haviam considerado não ter ele suficiente vocação para ingressar no noviciado, pelo que teve de abandonar o convento sem poder sequer despedir-se de mim». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT