quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Literatura no 31. O Clube Mefisto. Tess Gerritsen. «A tia calou-se, momentaneamente estupefacta. Depois o seu rosto abriu-se num sorriso e ela subiu os degraus a correr para o abraçar. Cheirava a sabonete Dove…»


jdact e wikipedia
PECCAVI
«(…) Não sabemos que será assim. Nem sequer chegámos a conhecer essa mulher! O Monty limitou-se a escrever-nos um dia do Cairo para nos comunicar que tinha um filho acabado de nascer. Tanto quanto sabemos, ele apanhou-o no meio dos juncos, como o Moisés em criança. O rapaz ouviu o chão estalar por cima dele e olhou de relance para o alto das escadas. Ficou espantado por ver a prima, Lily, a olhar para ele por cima do corrimão. Estava a observá-lo, a estudá-lo, como se ele fosse alguma criatura exótica que nunca tivesse visto antes e tentava perceber se era perigosa.  Ah!, disse a tia Amy.  Estás acordado! Os tios tinham acabado de sair do escritório e estavam no fundo das escadas, a olhar para ele. Parecendo também um pouco consternados com a eventualidade de ter ouvido por acaso toda a conversa deles. Sentes-te bem, querido?, perguntou Amy. Sinto, tia. É tão tarde. Talvez devesses voltar agora para a cama? Mas ele não se mexeu. Ficou parado na escada por alguns instantes, perguntando-se como seria viver com esta gente. O que poderia aprender com eles. Isso poderia tornar interessante o Verão, até a mãe vir ter com ele. Tia Amy, já tomei uma decisão, disse ele. Sobre quê? A respeito do meu Verão e onde gostaria de o passar. Ela calculou logo o pior. Por favor, não tomes decisões apressadas! Nós temos uma casa realmente muito boa, mesmo junto ao lago, e tu terás um quarto só para ti. Pelo menos vem fazer-nos uma visita antes de decidires o que vais fazer. Mas eu já decidi que vou ficar convosco.
A tia calou-se, momentaneamente estupefacta. Depois o seu rosto abriu-se num sorriso e ela subiu os degraus a correr para o abraçar. Cheirava a sabonete Dove e a shampô Breck. Tão comum, tão vulgar. Depois um risonho tio Peter deu-lhe uma palmada afectuosa no ombro, a sua maneira de dar as boas-vindas a um novo filho. A felicidade deles era como um rolo de algodão-doce, arrastando-o para o seu universo, onde tudo era amor, luz e riso. Os pequenos vão ficar tão contentes por vires connosco!, disse Amy. Ele olhou de lado para o alto das escadas, mas Lily já não estava lá. Tinha-se escapulido, sem que ninguém visse. Vou ter de ficar de olho nela, pensou. Porque ela já está de olho em mim. Agora fazes parte da nossa família, disse Amy. Enquanto subiam as escadas juntos, ela estava já a contar-lhe os seus planos para o Verão. Todos os lugares onde o iriam levar, todos os pratos especiais que iriam cozinhar para ele quando chegassem a casa. Ela parecia feliz, mesmo estonteada, como uma mãe com o seu filho recém-nascido. Amy Saul não fazia ideia do que estavam prestes a levar para casa com eles.
Talvez isto fosse um erro. A dra Maura Isles parou antes dos portais da Nossa Senhora da Divina Luz, sem saber se devia entrar. Os paroquianos tinham já entrado e ela ficou sozinha na noite enquanto a neve caía suavemente sobre a sua cabeça descoberta. Através das portas fechadas da igreja ouviu a organista começar a tocar o Adeste Fidelis e compreendeu que nesta altura já estariam todos sentados. Se ia mesmo juntar-se a eles, era esse o momento para entrar. Hesitou, porque verdadeiramente o seu lugar não era entre os fiéis que estavam dentro dessa igreja. Mas a música chamou-a, tal como a promessa de calor e o consolo de rituais conhecidos. Aqui fora, na rua escura, encontrava-se sozinha. Sozinha na véspera de Natal. Subiu as escadas, entrando no edifício. Mesmo a esta hora tardia, os bancos da igreja estavam cheios com as famílias e crianças sonolentas que tinham sido tiradas das camas para a missa do Galo. A chegada atrasada de Maura atraiu diversos olhares e, enquanto os acordes do Adeste Fidelis se desvaneciam, ela deslizou rapidamente para o primeiro lugar vazio que encontrou, perto da entrada. Quase imediatamente a seguir teve de se levantar para acompanhar o resto da assistência quando se iniciou o cântico de entrada. O padre Daniel Brophy aproximou-se do altar e fez o sinal da cruz. A graça e a paz de Deus nosso Pai e de Nosso Senhor Jesus Cristo estejam convosco, disse ele. E contigo também, murmurou Maura, juntamente com a assistência. Mesmo depois de todos estes anos longe da Igreja, as respostas fluíam naturalmente dos seus lábios, aí arraigadas por todos os domingos da sua infância. Senhor, tem misericórdia de nós. Cristo, tem misericórdia de nós. Senhor, tem misericórdia de nós. Embora Daniel não se desse conta da presença dela, os olhos de Maura estavam fixados nele. No seu cabelo escuro, nos seus gestos graciosos, na sua boa voz de barítono. Esta noite, podia observá-lo sem vergonha, sem constrangimento. Esta noite podia olhar para ele à vontade». In Tess Gerritsen, O Clube Mefisto, 2006, Ulisseia, colecção Vício da Leitura, 2008, ISBN 978-972-568-602-7. 
Cortesia de Ulisseia/JDACT