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York.
Inglaterra. 1268
«William
já não ia fugir. Durante algum tempo, ficara à espera nas sombras ao lado de um
dos portões secundários da cidade muralhada de York, o seu cavalo preso ali
perto. A sua amada Alicia não aparecera. Há muito que os sinos das Completas se
tinham feito ouvir e, por isso, impaciente e irritado, abandonou o local do
encontro secreto e conduziu o cavalo na direcção da casa do pai dela. O pai de
Alicia era um bom homem. Comerciante de sucesso, subira a pulso até ao topo da
classe dos mercadores. Mas era anglo-saxão. A sua origem, bem como o seu
ofício, tornava Alicia uma parceira inadequada aos olhos dos pais dele,
aristocratas de origem normanda. Mas William queria casar-se com ela.
Cortejara-a em segredo, e ambos tinham feito planos para se encontrarem e
fugirem para norte. Ali poderiam casar-se e, com as poucas jóias e artigos da
casa que William roubara à família, construiriam uma vida juntos. Ele era novo,
e forte, e extremamente inteligente. Alicia era bonita, bondosa e diligente.
Unidos, teriam uma vida feliz. Apesar da sua promessa, Alicia não aparecera. William
praguejou em anglo-normando, a sua língua materna, assumindo que o pai de
Alicia descobrira o plano de fuga dos jovens e a prendera em casa. Ele amava-a.
Queria ficar com ela, nem que tivesse de lutar com o seu pai, espada contra
espada. Naquele momento, sentia o sangue a cantar nas veias, e o seu corpo
contraiu-se de desejo por ela. Tinham concordado em esperar pelo casamento
antes de se deitarem juntos, mas isso não os impedira de se beijarem e de se
entregarem a pequenas indulgências sempre que podiam. Agora estava ansioso por
desnudá-la pela primeira vez e aprender os segredos do seu corpo. Distraído com
pensamentos tão agradáveis e sensuais, William tropeçou. Pelos ossos de Deus!,
praguejou, deixando cair a trela do cavalo e caindo para a frente. Um gemido
baixo ressoou do chão. Quando recuperou o equilíbrio, William debruçou-se sobre
o que parecia ser um molho de roupas. Um raio de luar apareceu por entre as nuvens,
iluminando o volume que o fizera tropeçar. O que julgara ser um molho de roupas
era, de facto, uma mulher. Usava uma capa escura com capuz, e tinhas as saias
puxadas para cima até à cintura. A parte inferior do seu corpo estava despida e
havia sangue a sujar-lhe as pernas e no meio, onde deveria ter estado a sua
virgindade. William recuou. Não podia deixá-la ali daquela maneira, nem mesmo
para ir procurar ajuda. Puxou-lhe a pesada saia azul para baixo, cobrindo-a. A
mulher estremeceu e contorceu-se. Ele voltou a pegar nas rédeas do seu cavalo e
estava prestes a montá-lo quando a mulher começou a sussurrar. Movia a cabeça
de um lado para o outro, e longas e onduladas madeixas de cabelo libertaram-se
do capuz e espalharam-se pelos seus ombros como uma cortina. Alguma coisa na
visão desse cabelo fê-lo deter-se. Ainda a agarrar as rédeas, debruçou-se para
a frente. A mulher fora gravemente espancada. Tinha ambos os olhos negros, um
deles totalmente cerrado pelo inchaço. O rosto estava ensanguentado, o lábio
rasgado. Ela ergueu uma mão a tremer enquanto o olhava com o único olho útil. William
sentiu a terra fugir-lhe de debaixo dos pés. Atirou as rédeas para o lado e
deixou-se cair de joelhos. Alicia? Alicia, que diabo é isto? Ela fechou o olho
e tossiu. Ele ergueu-a nos braços, embalando-a contra o peito. Alicia gritou
com o movimento. Ficou caída nos braços dele, demasiado fraca para se debater.
Uma mão trémula tacteou o tecido das suas saias, puxando-as como que para se
cobrir. A visão dilacerou-o. Alicia. A voz dele embargou-se. Quem fez isto?
Desconhecidos. Ela tinha dificuldade em respirar. Gritei por ajuda. Ninguém
apareceu. Agarrou-o pela camisa. Will..., conseguiu dizer, aninhando-se contra
ele. Por um momento, pareceu conter a respiração, depois o seu corpo tornou-se
mole. William comprimiu-a contra o coração, enquanto a vida da amada se
escapava do seu corpo. Ergueu os olhos ao céu negro e gritou.
Úmbria.
Itália. 2013
Parado
na frente de uma casa na Umbria, o príncipe de Florença estava dividido. Já se
apresentara perante a princesa da região, e conseguira evitar as suas
investidas românticas. Em ocasiões anteriores, tivera oportunidade de se
deleitar com o seu corpo, era linda, inteligente e vibrantemente sexual, como a
maior parte dos da sua raça. Nessa noite, porém, descobrira que os seus
encantos não o atingiam. Depois de declinar delicadamente o convite da princesa
para forn…, saiu para caçar em terrenos da Úmbria com a sua renitente autorização».
In
Sylvain Reynard, Uma Sombra sobre Florença, 2016, Edições Chá das Cinco, Saída
de Emergência, 2016, ISBN 978-989-710-241-7.
Cortesia de
ECdasCinco/SdeEmergência/JDACT