sábado, 6 de agosto de 2016

Onde Vais Isabel? Maria Helena Ventura. «Mal cumpre a missão o moço das cavalariças volta ao trabalho, eu fico por ali, inebriado com a intensidade de aromas. Sinto fome. Alheado do perigo de ser descoberto como intruso»

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«(…) Ainda atira o corpo para a frente, convencido de poder apanhar-me o braço e castigar o meu arrojo. Onde pensas que vais? Onde bem me apetecer, não posso?... Só porque tens mundaira certa já te iulgas homem? Daqui não passarás, não me podeis embargar..., olhai como passo adiante. Só lhe permito o aceno de cabeça em sinal de reprovação, antes de galgar as pequenas escadas do pátio dos claustros. Logo à direita entro na porta interior do paço, atrás do rapaz, para vencer, agora colado a ele, mais oito degraus até ao nível dos cómodos de serviço. Andamos umas polegadas, num corredor com janelas. Detemo-nos quando alcançamos um átrio pequeno, com porta de entrada de almocreves e fornecedores, e acesso directo ao pátio onde meu tio espera. Ninguém nos impede a passagem para diante desta raia, que separa a zona dos serventes da área nobre destinada à família real. O plano do mancebo é simples, conforme me confia, a meia voz. Procuro outro varão da minha criação, dado a conversas com pajens e camareiras e ele é de confiança? De confiança é. E não lhe dá cousa ser visto por maiores do paço. Se ele conseguir contar-lhe o estranho recado, num ápice a tal dama pode correr ao terreiro para acalmar o homem da mula ruça, capaz de morrer roído de ânsias. Morrer não morre, descansa, agora vir por aí desabrido e deixar o cavalo sozinho... Credo..., vamos então à procura de minguar o mal, quanto antes. Passada a porta da cozinha a fervilhar de gente, depois a zona das copas, esperamos uma aberta no vaivém de criados que arranjam e levam pratos largos por um estreito corredor. Esta passagem é atravessada por outra, que abre para todas as divisões da planta inferior. Do lado direito vemos duas portas, a primeira com entrada para a sala de refeições diárias, a outra com acesso à biblioteca, prolongada como braço para a Plaça del Palau. A esquerda ficam a sala de bordar e a salinha de leitura, ambas com portas para a varanda de trás, virada para o claustro. À frente deste corredor, apanhando a área das salas de um lado e do outro, fica o Salão do Trono ou Sala dos Arcos Românicos, com a porta principal de entrada no paço, à direita.
A esta hora ainda os reposteiros que a separam do corredor estão afastados, para os criados circularem sem estorvos. Os convidados já são muitos, a maior parte de reinos vizinhos, confirmantes do casamento por procuração da filha de Pedro com o rei de Portugal. Mas pela forma de trajar reconhecem-se embaixadores de fora da Ibéria, prontos para a cerimónia daqui a pouco na catedral, à distância de uns passos. Para lá deste salão, com tecto suportado por bela arcaria românica, um portal de arco perfeito dá acesso a um átrio espaçoso. À esquerda acho que fica a escada de acesso à planta superior. À direita é a entrada directa para a capela real, colada à muralha romana. A minha vontade era romper por ali, subir as escadas, explorar o ultimo piso. Em vez disso aceito a sugestão do mancebo para voltar atrás uns passos. Ainda não há tanta gente que dissimule duas presenças mal apostadas. Ficamos algum tempo meio escondidos à entrada da biblioteca, onde se guardam os documentos importantes como o que vai ser lavrado ainda hoje, no regresso da catedral. Ouvimos a porta principal a fechar. Quer dizer que não falta ninguém, a Sala do Trono deve estar repleta. Voltamos então a dar uns passos em frente, para assomar à entrada de olhos esbugalhados. Diziam os criados que não podia haver festa? Nunca eu tinha visto tanto lustro de baixelas, trajes, pedraria, habituado à austera nudez das casas onde tenho entrada. Os cavaleiros reviram os olhos gulosos para mesas compridas, ao longo das paredes, depois para as donzelas casadoiras como qualquer varão humilde das charnecas ou dos montes.
Os criados não páram. Carregam pratos de peixe fresco chegado há poucas horas do cais, pão do melhor trigo dos campos de Zaragoza, frutos e vegetais frescos da região de Valência. Alguns levam fornadas de pães mimosos de Castela, manjares dos pueblos de Navarra. Outros ainda, aprumados como garças nas margens dos sapais, carregam jarros de vinho maduro de além Pirenéus, do sueste do Midi, o néctar das uvas de Vila Franca del Penedès, minha terra e de nosso rei. Mas progressos na missão que nos traz aqui, nada. O moço desespera. Há tanto tempo sem avistar o amigo teme pelo cavalo do lado de fora a imaginar o goliardo ansioso pelo retorno da generosa dádiva. Decide então voltar à zona de serviço, ele à frente eu atrás. Ambos confundidos com a fila de carregadores de giga às costas, pegamos em ceirões amontoados pelo caminho mais estreito que conduz à copa, à cozinha, acabando por pousá-los quando finalmente avistamos o mancebo que procuramos.

Ay, senhor fremosa, posa Deus
Mal cumpre a missão o moço das cavalariças volta ao trabalho, eu fico por ali, inebriado com a intensidade de aromas. Sinto fome. Alheado do perigo de ser descoberto como intruso, vou à cozinha catar coisa que se coma. Ninguém me agarra o braço para me enxotar, não há ordens que me neguem a comida, ninguém pergunta donde venho ou ao que vou. Satisfeito volto ao mesmo lugar. Será que ninguém dá por mim se atravessar a sala, até ao átrio para lá da entrada? Arrisco, procurando não tocar os corpos dos fidalgos, mais chegados às paredes com janelas. Ponho o ouvido à escuta ao fundo das escadas que ligam à segunda planta. Não ouço ruído que ameace a ousadia. De modo que vou por ali acima, a galgá-las de um só fôlego, para vencer outro corredor de passagem estreita. Há portas fechadas, talvez as câmaras reais com janelas para o largo. Alcanço a ultima, levado pelo soar de vozes como brisa nos pinhais». In Maria Helena Ventura, Onde Vais Isabel, Saída de Emergência, 2008, ISBN 978-989-637-034-3.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT