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A voz única e doce do coro era apenas um murmúrio e as pessoas curvavam as
cabeças, esperando pela Elevação da Hóstia. Determinado, abriu caminho por entre
a multidão até chegar ao vulto escuro e musculado de Lorenzo Medici, perto do
lado sul do altar, onde tinham combinado encontrar-se naquela manhã, mas recuou
ao vislumbrar o irmão de Lorenzo, Giuliano, estranhamente isolado com Francesco
Pazzi e Bernardo Bandini, no lado oposto da igreja, perto da Via Servi. Aqueles
três não eram amigos. Francesco, hirsuto e de cabelo claro, parecia nervoso, com
o braço pousado sobre os ombros de Giuliano e lançando olhares furtivos para um
lado e para o outro. Os olhos de Guid'Antonio desviaram-se para Lorenzo e novamente
para o outro lado. Não viu o machado de Bandini até que a lâmina brilhou com a
luz das velas e cortou a cabeça de Giuliano. Depois disso, o tempo abrandou,
como se se desenrolasse languidamente numa longa e negra fita. Giuliano caiu de
joelhos, com a cabeça a jorrar sangue. Francesco saltou para cima dele com uma
excitação selvagem e espetou-lhe uma faca na carne suave do pescoço desnudo.
Perto deles, um rapaz gritou: A cúpula vai cair! Homens, mulheres e crianças
atrapalharam-se e caíram numa nova onda de medo e pânico. Não!, gritou Guid'Antonio.
Giuliano! Tentou avançar, mas perdia repetidamente terreno, como se mãos
fantasma lhe agarrassem no manto carmesim e o puxassem para trás pela bainha. Giuirano!
O seu bom e jovem amigo, esfaqueado repetidamente como se de um boneco de
trapos se tratasse e não de um corpo feito de músculos rijos e ossos.
Assassinado, enquanto Guid’Antonio observava à distância. Como podia ter sido
tão impotente? Ouviu o som da trovoada a rugir no exterior do apartamento no castelo,
em Plessis-les-Tours, e escutou o vento francês a gemer e a uivar. Inquieto e
transpirado, atirou os lençóis para trás e ficou a olhar para o vazio, agarrado
às memórias que cravavam nele as suas garras sem jamais o largarem.
Vinte
e seis de Abril de 1478, dois anos antes. Ainda conseguia sentir o ar fresco do
interior da Catedral de Florença e cheirar o aroma residual do Inverno. Conseguia
ouvir o tinir do sino do padre. O que via quando ficava acordado de noite era a
imagem de Giuliano Medici no chão da igreja, com o sangue a jorrar-lhe da
cabeça. A dor dilacerava o peito de Guid’Antonio. Porque não percebera o que
estava a acontecer quando viu Giuliano com Francesco Pazzi e Bernardo Bandini,
aqueles dois insurrectos? Por que motivo uma voz não gritou sinais de alarme
dentro de si? As famílias Medici e Pazzi não eram amigas. As suas casas eram
demasiado antigas, bem conhecidas e ricas. A rivalidade entre ambas era feroz.
Porém, até àquela manhã de Abril, as duas grandiosas casas florentinas tinham
conseguido gerir as animosidades. Nadando à superfície das águas espelhadas,
nenhuma das duas se afundava. Eram mentiras em cima de mentiras. Por que motivo
não tinha ido para junto de Giuliano quando o viu na igreja? Porque não ficou
ao lado dele a rezar? Mas não. Não. Em vez de salvar o filho favorito de
Florença, ajoelhou-se ao lado do seu corpo mutilado no chão de pedra fria da
igreja e ergueu as mãos para o céu na mais completa e crua incredibilidade.
Deitara-se à sua frente, protegendo-o da debandada de gente de sandálias, de
botas e de pés descalços. Tinha ajudado os monges a embrulhar o corpo de Giuliano
no manto de veludo preto do jovem Medici; ficara profundamente grato por Lorenzo
ter conseguido escapar ao padre armado que o atacou, conseguindo apenas
fazer-lhe um golpe superficial no pescoço, isto, se o que os monges afirmaram
era a verdade. Como podiam saber? Os dedos manchados de tinta dos monges estavam
tão trémulos como os de Guid’Antonio». In Alana White, O Mistério das Lágrimas da
Virgem, 2012, Marcador Editora, 2013, ISBN 978-989-847-096-6.
Cortesia
de MarcadorE/JDACT