segunda-feira, 15 de agosto de 2016

1Q84. Haruki Murakami. «O que mais chamava a atenção era o facto de o carro ser silencioso. O isolamento acústico bloqueava praticamente todo o ruído externo. Era como estar num estúdio à prova de som»


Cortesia de wikipedia e jdact

«Eis o mundo do espectáculo em que tudo é fantasia; mas, se você acreditar em mim, real ele se tornará»

Não se deixe enganar pelas aparências (Aomame)
«O rádio do táxi estava sintonizado em FM numa estação de música clássica. Tocava a Sinfonietta de Janácek. Aquela provavelmente não era uma das músicas mais apropriadas para se ouvir num táxi, em pleno congestionamento. O motorista também não parecia estar prestando muita atenção a ela. Como um experiente pescador que, de pé na proa de seu barco, pressente algo ruim ao observar o encontro das correntes marítimas, esse senhor de meia-idade olhava, em silêncio, a fileira de carros à sua frente. Aomame, confortavelmente recostada no banco de trás, escutava a música com os olhos levemente cerrados.Quantas pessoas no mundo seriam capazes de identificar que aquela era a Sinfonietta de Janácek, ouvindo apenas os primeiros acordes? Provavelmente seriam entre muito poucas a quase nenhuma. Por acaso, Aomame era uma delas. Janácek compôs a pequena sinfonia em 1926. A princípio, a parte introdutória fora composta para servir de tema de fanfarra numa competição desportiva. Aomame pôs-se a imaginar a Tchecoslováquia de 1926. Com o fim da Primeira Guerra Mundial e, finalmente, livres do longo período de domínio dos Habsburgo, as pessoas se reuniam em cafés e desfrutavam a paz momentânea na Europa Central, bebendo cerveja Pilsen enquanto outras fabricavam as legítimas e gélidas metralhadoras. Dois anos antes, Franz Kafka deixara este mundo após uma vida de infortúnios. Em breve, Hitler surgiria do nada e, num piscar de olhos, assolaria aquele país pequenino e belo; mas o facto é que, naquele momento, ninguém sequer imaginava quão cruelmente seriam devorados. A única máxima que a História parece nos revelar, de suma importância, é que naquela época, ninguém sabia o que estava para acontecer. Embalada pela música, Aomame imaginou uma delicada brisa deslizando sobre as planícies da Boémia; imagem que a instigou a pensar nos rumos da História. Em 1926, com a morte do Imperador Taishó, dava-se início ao período Shówa. Mudança que também marcava o começo de uma era negra e sombria, prestes a assolar o Japão. Findava o breve interlúdio entre o modernismo e a democracia; e o fascismo começava a mostrar suas garras.
História, assim como Desporto, era um dos assuntos preferidos de Aomame. Romances, quase não os lia, mas, em compensação, procurava ler tudo que estivesse relacionado a História. O que a fascinava era constatar que todos os acontecimentos estavam intrinsecamente relacionados a datas e locais específicos. Memorizar datas históricas não era algo tão difícil para ela. Nunca precisou decorá-las, pois bastava contextualizar os acontecimentos para que as datas surgissem espontaneamente. Durante o ginásio e o colegial, Aomame sempre se destacara nas provas de história. E toda vez que alguém reclamava da dificuldade de memorizar datas, Aomame pensava indignada: por que será que não consegue aprender algo tão fácil? Aomame, ou ervilha verde, era seu verdadeiro sobrenome. O avô paterno era da província de Fukushima e, nos vilarejos e cidadezinhas daquela região montanhosa, de facto, existiam pessoas com o mesmo sobrenome. Mas ela nunca chegou a conhecer o local. Antes mesmo de ela nascer, seu pai havia cortado relações com a família. Sua mãe fizera o mesmo. Razão pela qual Aomame não conhecia seus avós. Ela raramente viajava, mas, vez por outra, quando o fazia, tinha o hábito de folhear a lista telefónica do quarto do hotel para verificar se havia algum Aomame residente na região. No entanto, em todas as metrópoles e cidades em que esteve, nunca encontrou ninguém. Nessas ocasiões, ela se sentia totalmente só; solitária como um náufrago na vastidão do oceano. Ter de dizer o sobrenome sempre fora um transtorno. Ao se apresentar, as pessoas lhe lançavam um olhar perplexo ou se mostravam hesitantes: Aomame? Isso mesmo... Escreve-se ao, de aoi, verde; e mame, de ervilha; e se lê Aomame’, ervilha verde. Sem contar que, na época em que trabalhava numa empresa e precisava ter o cartão de visita sempre à mão, os aborrecimentos também não eram poucos. Tão logo mostrava o cartão de visita, a pessoa detinha-se a olhá-lo demoradamente. Era como se acabasse de receber uma carta inesperada com notícias desagradáveis. De vez em quando, ao atender uma ligação e se identificar, costumava ouvir risadinhas do outro lado da linha. Quando a chamavam nas salas de espera de repartições públicas ou hospitais, os demais logo olhavam para ela, curiosos em saber como seria a cara de uma Aomame: a cara da sra. Ervilha Verde.
Às vezes, as pessoas erravam seu nome e a chamavam de sra. Edamame, soja. Isso quando não a chamavam de Soramame, fava. Nessas ocasiões, ela corrigia: não é Edamame (ou Soramame), é Aomame. É quase tudo a mesma coisa, mas... A pessoa, constrangida, pedia desculpas e, com um sorriso sem graça, comentava: puxa... Que sobrenome diferente! Ela já havia perdido a conta de quantas vezes tivera de escutar a mesma ladainha nesses seus trinta anos de existência. Igualmente, perdeu a conta de quantas vezes seu sobrenome fora alvo de piadinhas infames. Se não tivesse nascido com ele, sua vida hoje poderia ser bem diferente. Se seu sobrenome fosse daqueles bem comuns, como Sató, Tanaka ou Suzuki, quem sabe sua vida teria sido bem menos estressante e ela seria hoje uma pessoa bem mais condescendente com o mundo. Quem sabe... Aomame apreciava a música com os olhos fechados, deixando-se envolver pelos belíssimos acordes em uníssono dos instrumentos de sopro. Foi quando, de repente, ocorreu-lhe que a qualidade do som era boa demais para um táxi. O som tinha densidade, e a harmonia dos instrumentos era nítida, a despeito de o volume estar baixo. Foi então que ela abriu os olhos e resolveu se debruçar para olhar o aparelho de som no painel. Era todo preto, sumptuosamente reluzente. E, apesar de não conseguir ver a marca, reconheceu, de imediato, que era de primeira linha. Havia diversos botões distribuídos no painel onde números verdes se destacavam com elegante luminosidade. Era, sem dúvida, um aparelho de última geração. Um taxista de frota jamais instalaria um equipamento de som tão sofisticado.
Aomame pôs-se a observar atentamente o interior do veículo. E, ainda que não tivesse reparado antes, de tão envolvida em mil pensamentos, agora se dava conta de que, realmente, não se tratava de um táxi comum. O acabamento interno era de boa qualidade, e o assento muito confortável. O que mais chamava a atenção era o facto de o carro ser silencioso. O isolamento acústico bloqueava praticamente todo o ruído externo. Era como estar num estúdio à prova de som. Devia ser um táxi particular, pois, dentre os autónomos, alguns realmente não se importavam em gastar com o carro. Movendo discretamente os olhos, Aomame procurou o registo do veículo, mas não o encontrou. O táxi, porém, não parecia ser clandestino. O taxímetro era oficial e marcava corretamente o preço: 2.150 ienes. O único problema era não encontrar o registo com o nome do motorista. Que carro óptimo! É bem silencioso..., comentou Aomame, do banco de trás. Como se chama este carro? É o Crown Royal Saloon, da Toyota, a resposta do motorista foi sucinta. O som é muito bom. É um carro silencioso. Foi um dos motivos que me fizeram ficar com ele. A tecnologia de isolamento acústico da Toyota é uma das melhores do mundo». In Haruki Murakami, 1Q84, 2009, Alfaguara, Editora Objectiva, 2012, ISBN 978-857-962-187-1.

Cortesia de EObjectiva/Alfaguara/JDACT