Cortesia
de wikipedia e jdact
«Eis o mundo do espectáculo em que tudo é
fantasia; mas, se você acreditar em mim, real ele se tornará»
Não
se deixe enganar pelas aparências (Aomame)
«O
rádio do táxi estava sintonizado em FM numa estação de música clássica. Tocava
a Sinfonietta de Janácek. Aquela provavelmente não era uma das músicas mais
apropriadas para se ouvir num táxi, em pleno congestionamento. O motorista
também não parecia estar prestando muita atenção a ela. Como um experiente
pescador que, de pé na proa de seu barco, pressente algo ruim ao observar o
encontro das correntes marítimas, esse senhor de meia-idade olhava, em
silêncio, a fileira de carros à sua frente. Aomame, confortavelmente recostada
no banco de trás, escutava a música com os olhos levemente cerrados.Quantas
pessoas no mundo seriam capazes de identificar que aquela era a Sinfonietta de
Janácek, ouvindo apenas os primeiros acordes? Provavelmente seriam entre muito
poucas a quase nenhuma. Por acaso, Aomame era uma delas. Janácek compôs a
pequena sinfonia em 1926. A princípio, a parte introdutória fora composta para
servir de tema de fanfarra numa competição desportiva. Aomame pôs-se a imaginar
a Tchecoslováquia de 1926. Com o fim da Primeira Guerra Mundial e, finalmente,
livres do longo período de domínio dos Habsburgo, as pessoas se reuniam em
cafés e desfrutavam a paz momentânea na Europa Central, bebendo cerveja Pilsen
enquanto outras fabricavam as legítimas e gélidas metralhadoras. Dois anos
antes, Franz Kafka deixara este mundo após uma vida de infortúnios. Em breve,
Hitler surgiria do nada e, num piscar de olhos, assolaria aquele país pequenino
e belo; mas o facto é que, naquele momento, ninguém sequer imaginava quão
cruelmente seriam devorados. A única máxima que a História parece nos revelar,
de suma importância, é que naquela época, ninguém sabia o que estava para
acontecer. Embalada pela música, Aomame imaginou uma delicada brisa deslizando
sobre as planícies da Boémia; imagem que a instigou a pensar nos rumos da
História. Em 1926, com a morte do Imperador Taishó, dava-se início ao período
Shówa. Mudança que também marcava o começo de uma era negra e sombria, prestes
a assolar o Japão. Findava o breve interlúdio entre o modernismo e a
democracia; e o fascismo começava a mostrar suas garras.
História,
assim como Desporto, era um dos assuntos preferidos de Aomame. Romances, quase
não os lia, mas, em compensação, procurava ler tudo que estivesse relacionado a
História. O que a fascinava era constatar que todos os acontecimentos estavam
intrinsecamente relacionados a datas e locais específicos. Memorizar datas
históricas não era algo tão difícil para ela. Nunca precisou decorá-las, pois
bastava contextualizar os acontecimentos para que as datas surgissem
espontaneamente. Durante o ginásio e o colegial, Aomame sempre se destacara nas
provas de história. E toda vez que alguém reclamava da dificuldade de memorizar
datas, Aomame pensava indignada: por que será que não consegue aprender algo tão
fácil? Aomame, ou ervilha verde, era seu verdadeiro sobrenome. O avô paterno
era da província de Fukushima e, nos vilarejos e cidadezinhas daquela região
montanhosa, de facto, existiam pessoas com o mesmo sobrenome. Mas ela nunca
chegou a conhecer o local. Antes mesmo de ela nascer, seu pai havia cortado
relações com a família. Sua mãe fizera o mesmo. Razão pela qual Aomame não
conhecia seus avós. Ela raramente viajava, mas, vez por outra, quando o fazia,
tinha o hábito de folhear a lista telefónica do quarto do hotel para verificar
se havia algum Aomame residente na região. No entanto, em todas as metrópoles e
cidades em que esteve, nunca encontrou ninguém. Nessas ocasiões, ela se sentia
totalmente só; solitária como um náufrago na vastidão do oceano. Ter de dizer o
sobrenome sempre fora um transtorno. Ao se apresentar, as pessoas lhe lançavam
um olhar perplexo ou se mostravam hesitantes: Aomame? Isso mesmo... Escreve-se ao,
de aoi, verde; e mame, de ervilha; e se lê Aomame’, ervilha verde. Sem
contar que, na época em que trabalhava numa empresa e precisava ter o cartão de
visita sempre à mão, os aborrecimentos também não eram poucos. Tão logo
mostrava o cartão de visita, a pessoa detinha-se a olhá-lo demoradamente. Era
como se acabasse de receber uma carta inesperada com notícias desagradáveis. De
vez em quando, ao atender uma ligação e se identificar, costumava ouvir
risadinhas do outro lado da linha. Quando a chamavam nas salas de espera de
repartições públicas ou hospitais, os demais logo olhavam para ela, curiosos em
saber como seria a cara de uma Aomame: a cara da sra. Ervilha Verde.
Às
vezes, as pessoas erravam seu nome e a chamavam de sra. Edamame, soja.
Isso quando não a chamavam de Soramame, fava. Nessas ocasiões, ela
corrigia: não é Edamame (ou Soramame), é Aomame. É quase tudo a mesma coisa,
mas... A pessoa, constrangida, pedia desculpas e, com um sorriso sem graça,
comentava: puxa... Que sobrenome diferente! Ela já havia perdido a conta de
quantas vezes tivera de escutar a mesma ladainha nesses seus trinta anos de
existência. Igualmente, perdeu a conta de quantas vezes seu sobrenome fora alvo
de piadinhas infames. Se não tivesse nascido com ele, sua vida hoje poderia ser
bem diferente. Se seu sobrenome fosse daqueles bem comuns, como Sató, Tanaka ou
Suzuki, quem sabe sua vida teria sido bem menos estressante e ela seria hoje
uma pessoa bem mais condescendente com o mundo. Quem sabe... Aomame apreciava a
música com os olhos fechados, deixando-se envolver pelos belíssimos acordes em
uníssono dos instrumentos de sopro. Foi quando, de repente, ocorreu-lhe que a
qualidade do som era boa demais para um táxi. O som tinha densidade, e a
harmonia dos instrumentos era nítida, a despeito de o volume estar baixo. Foi
então que ela abriu os olhos e resolveu se debruçar para olhar o aparelho de
som no painel. Era todo preto, sumptuosamente reluzente. E, apesar de não
conseguir ver a marca, reconheceu, de imediato, que era de primeira linha.
Havia diversos botões distribuídos no painel onde números verdes se destacavam
com elegante luminosidade. Era, sem dúvida, um aparelho de última geração. Um
taxista de frota jamais instalaria um equipamento de som tão sofisticado.
Aomame
pôs-se a observar atentamente o interior do veículo. E, ainda que não tivesse
reparado antes, de tão envolvida em mil pensamentos, agora se dava conta de
que, realmente, não se tratava de um táxi comum. O acabamento interno era de
boa qualidade, e o assento muito confortável. O que mais chamava a atenção era
o facto de o carro ser silencioso. O isolamento acústico bloqueava praticamente
todo o ruído externo. Era como estar num estúdio à prova de som. Devia ser um
táxi particular, pois, dentre os autónomos, alguns realmente não se importavam
em gastar com o carro. Movendo discretamente os olhos, Aomame procurou o registo
do veículo, mas não o encontrou. O táxi, porém, não parecia ser clandestino. O
taxímetro era oficial e marcava corretamente o preço: 2.150 ienes. O único problema
era não encontrar o registo com o nome do motorista. Que carro óptimo! É bem
silencioso..., comentou Aomame, do banco de trás. Como se chama este carro? É o
Crown Royal Saloon, da Toyota, a resposta do motorista foi sucinta. O som é
muito bom. É um carro silencioso. Foi um dos motivos que me fizeram ficar com
ele. A tecnologia de isolamento acústico da Toyota é uma das melhores do mundo».
In
Haruki Murakami, 1Q84, 2009, Alfaguara, Editora Objectiva, 2012, ISBN
978-857-962-187-1.
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EObjectiva/Alfaguara/JDACT