segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Vataça. Francisco do Ó Pacheco. «Um suave sorriso de adeus deu-lhe um ar infantil de harmonia angelical. Era como se estivesse feliz por ter já transportado para os seus filhos os problemas, que de há muito a incomodavam».

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«(…) E de facto tudo aconteceria como havia sido dito e no dia seguinte a galé do grego Ulisses Patrai âncorava em Barcelona e à sua chegada lá tinha o jovem cavaleiro Manolo Ratia pedindo-lhe que se dirigisse ao palácio de Beatriz Lascaris onde, sua amiga de infância Eudóxia Lascaris, que se encontrava doente, queria e muito falar com ele. Ulisses era um homem enorme com mais de um metro e noventa de altura e seguramente com mais de cento e vinte quilos de peso. Apesar da idade continuava enxuto, sem ponta de gordura, apenas e só osso e músculo. Havia quem lhe chamasse desde muito jovem o novo Hércules, lá para os lados do mar Egeu, pela força descomunal que que era portador. Prontamente acedeu ao pedido do jovem mensageiro e seguiram de imediato para o palácio de Beatriz Lascaris. Para Ulisses andar no meio da confusão da actividade portuária era simples porque não precisava de se desviar de ninguém. Quem com ele chocasse, estivesse o que estivesse a transportar, era queda certa e se apenas ficasse a bandear o próprio Ulisses se encarregava de o afastar do seu caminho com um ligeiro empurrão, como se uma mão das suas, quando tocasse alguém, fosse apenas um pequeno empurrão. Quem gozava com todo o aparato da situação era o jovem Manolo que com a sua magrra figura pedia com alguma arrogância que o deixassem passar e quando não lhe ligavam nenhuma logo se esquivava e deixava que surgisse Ulisses e abrisse o caminho.
Pouco depois Ulisses encontrava-se com Eudóxia e para ele foi um grande choque ver a situação de doença e de definhamento em que a sua amiga se encontrava. O próprio sorriso dela que trazia na memória, outrora branco e alegre, não passava agora de algo acinzentado e amarelo quase sem expressão. Ficou deveras combalido mas tentou não o demonstrar e como quase sempre, quando os amigos se encontram, as saudações são sempre de aspecto reluzente, quando não existe brilho, ou de votos de muita saúde, quando esta já não abunda. Ulisses ouviu atentamente a história que Eudóxia lhe contou e colocou-se de imediato ao seu serviço e logo que chegasse a Constantinopla, dentro de alguns meses, tentaria saber o que teria acontecido ao tesouro dos Lascaris, à Cruz do Santo Lenho e à Cabeça-Relicário de S. Fabiano e principalmente, a João Lascaris, irmão de Eudóxia. Estava prometido, ele e seu filho Diógenes, se encarregariam de trazer tais informações a Barcelona dentro de uns cinco meses ou talvez menos. Portanto, dizia Ulisses Patrai para Eudóxia, tens de te pôr bem, porque dentro desse intervalo de tempo, quando regressar, quero ver-te com saúde e com alegria. E assim dito, logo se foi, após beijar suavemente a face de Eudóxia e de se ter despedido de todos os seus filhos.
No dia seguinte, Eudóxia Lascaris partia com as suas aias mais chegadas e com sua filha Vataça para Zaragoça, contra a vontade de todos os seus filhos que lhe haviam insistentemente sugerido, que ficasse mais uns dias em casa de Beatriz e mais tarde, quando se sentisse melhor, logo partiria para Zaragoça. Mas não. Eudóxia queria assim e não havia nada a fazer. Com muito cuidado e carinho fizeram uma espécie de cama num dos bancos do coche do rei de Castela, onde deitaram Eudóxia, e Vataça seguia mesmo na sua frente, cuidando que os solavancos dos caminhos a não incomodassem muito. Chegadas a Zaragoça. depois de uma viagem bem cansativa que causou muitas apreensões e receios a Vataça, chegaram a casa de Eudóxia. Com todos os cuidados os criados ajudaram a sua senhora a descer do coche e a deslocar-se até à sua câmara, onde a deitaram e cobriram delicadamente. Antes de adormecer beijou sua filha e com um leve acenar despediu-se de Vataça. Um suave sorriso de adeus deu-lhe um ar infantil de harmonia angelical. Era como se estivesse feliz por ter já transportado para os seus filhos os problemas, que de há muito a incomodavam». In Francisco do Ó Pacheco, Vataça, A Favorita de Dom Dinis, Prime Books, 2013, ISBN 978-989-655-183-4.

Cortesia de PBooks/JDACT