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Londres. Maio de 1537
«(…) Encostei-me às guardas da carroça.
Passámos por um pequeno mercado, que parecia não vender senão especiarias e
ervas aromáticas. Tinha deixado de chover, pelo que os vendedores afastaram as
mantas que protegiam as suas bancas estreitas. Uma mistura rica de borragem,
salva, tomilho, alecrim, salsa e cebolinho espalhou-se pelo ar, dissolvendo-se
à medida que nos afastávamos sacolejando. Os odores urgentes da cidade
retomaram a sua intensidade. Uma fila de edifícios de quatro andares surgiu à
nossa vista: ainda não tinha visto nada tão próspero. Uma placa de ourives
pendia numa esquina. Um rapaz novo, que ia sentado à minha frente, sorriu e
disse, em voz alta, para todos os passageiros da carroça: estamos gratos ao rei
Hal por queimar uma jovem beldade em Smithfield. A última pessoa a morrer na
fogueira foi um falsário velho e feio.
Um pedaço do pão que engolira subiu-me à
garganta. Tapei a boca com a mão. Mas é uma beldade?, perguntou outra voz. Um
velhote, com os olhos azuis aguados, torceu um pêlo comprido que lhe nascia no
meio do queixo. Conheço uma pessoa que viu lady Bulmer em carne e osso, e, sim,
é bonita, declarou lentamente. Mais bonita do que a rainha. Qual das rainhas?,
bradou um dos homens. Todas as três, replicou outro. Um riso nervoso percorreu
a carroça. Troçar dos casamentos do rei, do divórcio da primeira mulher e da
execução da segunda para abrir caminho para a terceira, era crime. Já tinham
sido amputadas mãos e orelhas por causa disso. O velhote torceu o pêlo do
queixo ainda com mais força: lady Bulmer deve ter ofendido gravemente o rei,
para ele a mandar queimar em público, diante da plebe, em vez de a condenar ao
machado em Tower Hill ou de a enforcar em Tyburn.
O rapaz novo retorquiu: todos os nobres e
aristocratas que seguiam Robert Aske foram trazidos para Londres. Pela justiça
do rei. Ela vai ser apenas a primeira a morrer. O meu coração bateu mais
depressa. Que diriam aqueles londrinos, que me fatiam, se soubessem quem eu era
e de onde vinha? Uma coisa era certa: nunca chegaria a Smithfield. Procurei uma
oração que pudesse sustentar-me o ânimo. Ó Senhor, meu Deus, ajudai-me a ser
obediente sem reserva, pobre sem servilismo, casta sem vacilação. Essa tal Bulmer
é uma rebelde nojenta!, gritou a mulher que tinha partilhado o seu pão comigo. É
uma papista do Norte, que conspirou para destronar o nosso rei. Humilde sem pretensão, alegre sem depravação,
séria sem afectação, activa sem frivolidade, submissa sem amargura, verdadeira
sem duplicidade. O velhote replicou suavemente: no Norte, deram a vida pelos
costumes antigos. Queriam proteger os mosteiros. Houve uma irrupção geral de
desprezo. Esses frades gordos escondem potes de ouro, enquanto os pobres morrem
de fome às suas portas. Ouvi contar de uma freira que teve um filho de um
padre. As freiras são prostitutas. Ou então são aleijadas. Idiotas corridas de
casa pelas famílias. Ouvi um ruído áspero. Era o meu próprio riso, um som
amargo e desprovido de alegria. Que passou despercebido, pois ouviu-se um grito
mesmo ao lado da carroça. Um diabrete corria ao nosso lado, tão depressa que
ultrapassou os cavalos. Um olhar aterrorizado, por cima do ombro, revelou que a
criança não era um rapaz, mas sim uma rapariga de rosto enfarruscado e cabelo
curto. Um pedaço de lama voou pelo ar e atingiu-a no ombro. Au!, gritou ela. Seus
canalhas! Dois rapazes grandalhões, que corriam pesadamente ao lado da carroça,
riram. Estavam quase a apanhá-la. Os homens que viajavam na carroça puseram-se
a encorajá-los.
A presa dos rapazes acelerou pela rua
abaixo, em direcção a uma fila de lojas. Outra rapariga acenou-lhe de uma porta,
bradando: aqui! A criança correu lá para dentro e a porta fechou-se atrás
delas. Os rapazes chegaram lá poucos segundos depois e bateram furiosamente,
mas a porta estava trancada». In Nancy Bilyeau, A Coroa, 2012, Editorial
Presença, Lisboa, 2012, ISBN 978-972-234-862-1.
Cortesia de EPresença/JDACT
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