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Porto
de Cádis, 7 de Janeiro de 1748
«(…)
José lhe havia explicado também que era viúvo e que tinha um filho licenciado que
havia estudado em Madri, aonde se dirigia para viver seus últimos dias. Em Cuba
possuía uma rentável plantação de tabaco numa veiga perto de Havana que ele
mesmo trabalhava com a ajuda de uma vintena de escravos. A solidão, a velhice e
a pressão dos açucareiros por obter terras para aquela florescente indústria o
haviam levado a vender sua propriedade e voltar à pátria, mas a peste o atacou
aos vinte dias de navegação e se encarniçou com sanha em sua natureza débil e doentia.
A febre, os edemas, a pele manchada e as gengivas sangrantes levaram o médico a
desenganar o paciente. Então, como era obrigatório nas naus do rei, o capitão
do La Reina ordenou ao escrivão que
fosse ao camarote de José para dar fé de suas últimas vontades. Concedo a
liberdade à minha escrava Caridad, sussurrou o enfermo depois de ordenar um par
de doações piedosas e de dispor da totalidade de seus bens em favor daquele filho
com que não se reencontraria. A mulher nem sequer chegou a curvar seus grossos
lábios numa menção de satisfação ao saber que estava livre, recordou o
sacerdote parado na rua. Não falava! O padre Damián recordou seus esforços por
ouvir Caridad entre as centenas de vozes que rezavam nas missas dominicais no
convés, ou seus tímidos sussurros nas noites, antes de deitar-se, quando ele a
obrigava a rezar. Em que ia trabalhar aquela mulher? O capelão era consciente
de que quase todos os escravos que obtinham a liberdade terminavam trabalhando para
seus antigos senhores por um mísero salário com que dificilmente chegavam a
cobrir necessidades que antes, como escravos, tinham garantidas, ou então
acabavam condenados a pedir esmola nas ruas, brigando com milhares de mendigos.
E estes haviam nascido na Espanha, conheciam a terra e sua gente, alguns eram
espertos e inteligentes. Como poderia mover-se Caridad numa cidade grande como
Cádiz?
Suspirou
e passou a mão repetidas vezes no queixo e no pouco cabelo que lhe restava.
Depois deu meia-volta, resfolegou ao levantar de novo o baú e, com ele às
costas, se preparou para desfazer o caminho andado. Que fazer agora?,
perguntou-se. Podia…, podia intermediar para quetrabalhasse na fábrica de
tabaco, disso, sim, ele sabia. É muito boa com as folhas; trata-as com carinho
e delicadeza, como deve fazer-se, e sabe reconhecer as melhores e torcer bons
charutos, havia-lhe dito José, mas isso significaria pedir favores e que se
soubesse que ele… Não podia arriscar-se a que Caridad contasse o que acontecera
na embarcação. Nos barracões da fábrica trabalhavam cerca de duzentas
charuteiras que não paravam de cochichar e criticar enquanto faziam os pequenos
charutos gaditanos. Encontrou Caridad ainda colada ao muro, parada,
desamparada. Um grupo de pirralhos zombava dela, diante da passividade das
pessoas que continuavam entrando e saindo do porto. O padre Damián se aproximou
justo quando um dos garotos se preparava para atirar-lhe uma pedra. Quieto!,
gritou. O rapaz deteve seu braço; a jovem se descobriu e baixou o olhar. Caridad
se afastou do grupo de sete passageiros que haviam embarcado na nau que ia
remontar o rio Guadalquivir até Sevilha e, cansada, tentou acomodar-se entre o
monte de volumes dispostos a bordo. A nau era uma tartana de um só mastro, mas
com um tamanho razoável, que havia arribado a Cádiz com um carregamento do
valioso óleo da várzea sevilhana. Da baía de Cádiz navegaram em cabotagem até
Sanlúcar de Barrameda, onde se encontra a desembocadura do Guadalquivir. Diante
das costas de Chipiona, junto a outras tartanas e charangas, prepararam-se para
esperar a preia-mar e ventos propícios para superar a perigosa barra de
Sanlúcar, os temíveis baixios que haviam convertido a zona num cemitério de embarcações.
Só
quando coincidiam todas as circunstâncias precisas para enfrentar a barra, os
capitães se atreviam a isso. Depois remontariam o rio aproveitando o impulso da
maré, que se deixava sentir até às cercanias de Sevilha. Deu-se o caso de naus
que tiveram de esperar até cem dias para cruzar a barra, dizia um marinheiro
que conversava com um passageiro luxuosamente ataviado, o qual de imediato desviou
um olhar preocupado para Sanlúcar e suas espectaculares marismas, como se
suplicasse que não tivesse a mesma sorte. Caridad, sentada entre uns sacos,
contra a borda da embarcação, deixou-se levar pelo cabeceio da tartana. O mar
mostrava uma calma tensa, a mesma que a que se apreciava em todos os que se
achavam na nau, igual à que imperava nas demais embarcações. Não era tão
somente a espera, era também o temor de um ataque por parte de ingleses ou
corsários. O sol começou a declinar ao mesmo tempo que as águas adquiriam uma
ameaçadora cor metálica, e as inquietas conversas de tripulantes e passageiros
decaíram até reduzir-se a sussurros. A crueza do Inverno se desatou com o
ocaso, e a humidade invadiu Caridad, aumentando a sensação de frio. Tinha fome
e estava cansada. Estava com o casaco, tão cinza e desbotado como seu vestido,
ambos de flanela grosseira, em contraste com os demais passageiros que haviam
embarcado com ela e que exibiam a seu bel-prazer luxuosas roupas de cores
vivas. Notou que lhe batiam os dentes e que estava com a pele arrepiada, de modo
que buscou a manta na trouxa. Seus dedos roçaram um charuto, e ela o apalpou
com delicadeza recordando seu aroma, seus efeitos. Necessitava dele, ansiava
perder os sentidos, esquecer o cansaço, a fome…, e até sua liberdade. Enrolou-se
na manta. Livre? O padre Damián a havia subido àquela embarcação, a primeira
que havia encontrado preparada para partir do porto de Cádiz. Vai para Sevilha,
para Triana, disse-lhe depois de acertar o preço com o capitão e pagá-lo de seu
bolso. Uma vez ali, procura o convento das Mínimas e diz que está ali de minha
parte. Caridad haveria gostado de ter a coragem de perguntar-lhe o que era
Triana ou como encontraria aquele convento, mas ele quase a empurrou para que
embarcasse, nervoso, olhandopara um lado e para outro, como se temesse que
alguém os visse juntos. Cheirou o charuto, e sua fragrância a transportou a
Cuba. Ela só sabia onde estavam sua cabana, e a plantação, e o moinho a que ia
todo domingo com os demais escravos para ouvir missa e depois cantar e dançar
até a extenuação. Da cabana à plantação e da plantação à cabana, um dia após
outro, um mês após outro, um ano após outro. Como ia encontrar um convento? Encolheu-se
contra a borda e pressionou as costas contra a madeira em busca do contacto com
uma realidade que havia desaparecido. Quem eram aqueles estranhos? E Marcelo?
Que haveria sido dele? Como estaria sua amiga María, a mulata com quem fazia os
coros? E os demais? Que fazia de noite numa embarcação estranha, num país
desconhecido, a caminho a uma cidade que nem sequer sabia que existia? Triana?
Nunca havia ousado perguntar nada aos brancos. Ela sempre sabia o que tinha de
fazer! Não necessitava perguntar». In Ildefonso Falcones, A Rainha Descalça,
2013, tradução de Rita Custódio e Alex Tarradellas, Bertrand Editora, Lisboa,
2014, ISBN 978-972-252-815-3.
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