domingo, 7 de agosto de 2016

A Rainha Descalça. Ildefonso Falcones. «O rapaz deteve seu braço; a jovem se descobriu e baixou o olhar. Caridad se afastou do grupo de sete passageiros que haviam embarcado na nau que ia remontar o rio Guadalquivir até Sevilha»

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Porto de Cádis, 7 de Janeiro de 1748
«(…) José lhe havia explicado também que era viúvo e que tinha um filho licenciado que havia estudado em Madri, aonde se dirigia para viver seus últimos dias. Em Cuba possuía uma rentável plantação de tabaco numa veiga perto de Havana que ele mesmo trabalhava com a ajuda de uma vintena de escravos. A solidão, a velhice e a pressão dos açucareiros por obter terras para aquela florescente indústria o haviam levado a vender sua propriedade e voltar à pátria, mas a peste o atacou aos vinte dias de navegação e se encarniçou com sanha em sua natureza débil e doentia. A febre, os edemas, a pele manchada e as gengivas sangrantes levaram o médico a desenganar o paciente. Então, como era obrigatório nas naus do rei, o capitão do La Reina ordenou ao escrivão que fosse ao camarote de José para dar fé de suas últimas vontades. Concedo a liberdade à minha escrava Caridad, sussurrou o enfermo depois de ordenar um par de doações piedosas e de dispor da totalidade de seus bens em favor daquele filho com que não se reencontraria. A mulher nem sequer chegou a curvar seus grossos lábios numa menção de satisfação ao saber que estava livre, recordou o sacerdote parado na rua. Não falava! O padre Damián recordou seus esforços por ouvir Caridad entre as centenas de vozes que rezavam nas missas dominicais no convés, ou seus tímidos sussurros nas noites, antes de deitar-se, quando ele a obrigava a rezar. Em que ia trabalhar aquela mulher? O capelão era consciente de que quase todos os escravos que obtinham a liberdade terminavam trabalhando para seus antigos senhores por um mísero salário com que dificilmente chegavam a cobrir necessidades que antes, como escravos, tinham garantidas, ou então acabavam condenados a pedir esmola nas ruas, brigando com milhares de mendigos. E estes haviam nascido na Espanha, conheciam a terra e sua gente, alguns eram espertos e inteligentes. Como poderia mover-se Caridad numa cidade grande como Cádiz?
Suspirou e passou a mão repetidas vezes no queixo e no pouco cabelo que lhe restava. Depois deu meia-volta, resfolegou ao levantar de novo o baú e, com ele às costas, se preparou para desfazer o caminho andado. Que fazer agora?, perguntou-se. Podia…, podia intermediar para quetrabalhasse na fábrica de tabaco, disso, sim, ele sabia. É muito boa com as folhas; trata-as com carinho e delicadeza, como deve fazer-se, e sabe reconhecer as melhores e torcer bons charutos, havia-lhe dito José, mas isso significaria pedir favores e que se soubesse que ele… Não podia arriscar-se a que Caridad contasse o que acontecera na embarcação. Nos barracões da fábrica trabalhavam cerca de duzentas charuteiras que não paravam de cochichar e criticar enquanto faziam os pequenos charutos gaditanos. Encontrou Caridad ainda colada ao muro, parada, desamparada. Um grupo de pirralhos zombava dela, diante da passividade das pessoas que continuavam entrando e saindo do porto. O padre Damián se aproximou justo quando um dos garotos se preparava para atirar-lhe uma pedra. Quieto!, gritou. O rapaz deteve seu braço; a jovem se descobriu e baixou o olhar. Caridad se afastou do grupo de sete passageiros que haviam embarcado na nau que ia remontar o rio Guadalquivir até Sevilha e, cansada, tentou acomodar-se entre o monte de volumes dispostos a bordo. A nau era uma tartana de um só mastro, mas com um tamanho razoável, que havia arribado a Cádiz com um carregamento do valioso óleo da várzea sevilhana. Da baía de Cádiz navegaram em cabotagem até Sanlúcar de Barrameda, onde se encontra a desembocadura do Guadalquivir. Diante das costas de Chipiona, junto a outras tartanas e charangas, prepararam-se para esperar a preia-mar e ventos propícios para superar a perigosa barra de Sanlúcar, os temíveis baixios que haviam convertido a zona num cemitério de embarcações.
Só quando coincidiam todas as circunstâncias precisas para enfrentar a barra, os capitães se atreviam a isso. Depois remontariam o rio aproveitando o impulso da maré, que se deixava sentir até às cercanias de Sevilha. Deu-se o caso de naus que tiveram de esperar até cem dias para cruzar a barra, dizia um marinheiro que conversava com um passageiro luxuosamente ataviado, o qual de imediato desviou um olhar preocupado para Sanlúcar e suas espectaculares marismas, como se suplicasse que não tivesse a mesma sorte. Caridad, sentada entre uns sacos, contra a borda da embarcação, deixou-se levar pelo cabeceio da tartana. O mar mostrava uma calma tensa, a mesma que a que se apreciava em todos os que se achavam na nau, igual à que imperava nas demais embarcações. Não era tão somente a espera, era também o temor de um ataque por parte de ingleses ou corsários. O sol começou a declinar ao mesmo tempo que as águas adquiriam uma ameaçadora cor metálica, e as inquietas conversas de tripulantes e passageiros decaíram até reduzir-se a sussurros. A crueza do Inverno se desatou com o ocaso, e a humidade invadiu Caridad, aumentando a sensação de frio. Tinha fome e estava cansada. Estava com o casaco, tão cinza e desbotado como seu vestido, ambos de flanela grosseira, em contraste com os demais passageiros que haviam embarcado com ela e que exibiam a seu bel-prazer luxuosas roupas de cores vivas. Notou que lhe batiam os dentes e que estava com a pele arrepiada, de modo que buscou a manta na trouxa. Seus dedos roçaram um charuto, e ela o apalpou com delicadeza recordando seu aroma, seus efeitos. Necessitava dele, ansiava perder os sentidos, esquecer o cansaço, a fome…, e até sua liberdade. Enrolou-se na manta. Livre? O padre Damián a havia subido àquela embarcação, a primeira que havia encontrado preparada para partir do porto de Cádiz. Vai para Sevilha, para Triana, disse-lhe depois de acertar o preço com o capitão e pagá-lo de seu bolso. Uma vez ali, procura o convento das Mínimas e diz que está ali de minha parte. Caridad haveria gostado de ter a coragem de perguntar-lhe o que era Triana ou como encontraria aquele convento, mas ele quase a empurrou para que embarcasse, nervoso, olhandopara um lado e para outro, como se temesse que alguém os visse juntos. Cheirou o charuto, e sua fragrância a transportou a Cuba. Ela só sabia onde estavam sua cabana, e a plantação, e o moinho a que ia todo domingo com os demais escravos para ouvir missa e depois cantar e dançar até a extenuação. Da cabana à plantação e da plantação à cabana, um dia após outro, um mês após outro, um ano após outro. Como ia encontrar um convento? Encolheu-se contra a borda e pressionou as costas contra a madeira em busca do contacto com uma realidade que havia desaparecido. Quem eram aqueles estranhos? E Marcelo? Que haveria sido dele? Como estaria sua amiga María, a mulata com quem fazia os coros? E os demais? Que fazia de noite numa embarcação estranha, num país desconhecido, a caminho a uma cidade que nem sequer sabia que existia? Triana? Nunca havia ousado perguntar nada aos brancos. Ela sempre sabia o que tinha de fazer! Não necessitava perguntar». In Ildefonso Falcones, A Rainha Descalça, 2013, tradução de Rita Custódio e Alex Tarradellas, Bertrand Editora, Lisboa, 2014, ISBN 978-972-252-815-3.

Cortesia BertrandE/JDACT