jdact
Porto
de Cádis, 7 de Janeiro de 1748
«(…)
À lembrança de Marcelo, humedeceram-se-lhe os olhos. Tenteou em sua trouxa em
busca da pederneira, do fuzil e da isca para fazer fogo. Permitiriam que
fumasse? Na plantação podia fazê-lo, era algo habitual. Havia chorado Marcelo
durante a travessia. Até…, até havia sentido a tentação de lançar-se ao mar
para pôr fim àquele constante sofrimento. Afasta-te daí, negra! Queres cair na
água?, advertiu-lhe um dos marinheiros. E ela obedeceu e se separou da borda. Haveria
tido coragem para jogar-se se não houvesse aparecido aquele marinheiro? Não
quis pensar no assunto uma vez mais; em lugar disso, observou os homens da
tartana: via-os nervosos. A preia mar havia começado, mas os ventos não a
acompanhavam. Alguns fumavam. Bateu com destreza o fuzil sobre a pederneira, e a
isca não tardou a acender-se. Onde encontraria as árvores com cuja casca e
fungos fabricava a isca? Acendeu o charuto, aspirou profundamente e pensou que
tampouco sabia onde poderia conseguir tabaco. A primeira passa tranquilizou sua
mente. As duas seguintes conseguiram que seus músculos se relaxassem, e caiu
numa tênue tontura. Negra, convidas-me a fumar? Um grumete estava acocorado
diante dela, tinha o rosto sujo mas vivaz e agradável. Por alguns instantes
Caridad se deixou embalar pelo sorriso com que o rapaz esperava sua resposta e
só viu seus dentes brancos, iguais aos de Marcelo quando se lançava em seus
braços. Havia tido outro filho, um mulato nascido do senhor, mas José o vendeu
assim que deixou de necessitar dos cuidados do par de velhas que se ocupavam
dos filhos das escravas enquanto estas trabalhavam. Todos seguiam o mesmo
caminho: o senhor não queria manter negrinhos. Marcelo, seu segundo filho,
concebido com um negro do moinho, havia sido diferente: um parto difícil; um
menino com problemas. Ninguém o comprará, afirmou o senhor quando, já criado, se
manifestaram sua falta de habilidade e suas deficiências. Consentiu-se que
ficasse na fazenda como se fosse um simples cão, uma galinha ou algum dos
porcos que criavam atrás da cabana. Morrerá, auguravam todos. Mas Caridad não
permitiu que isso sucedesse, muitas foram as pauladas e chicotadas que levou
quando a descobriam alimentando-o. Nós te damos de comer para que trabalhes,
não para que cries um imbecil, repetia-lhe o capataz. Negra, convidas-me a
fumar?, insistiu o grumete. Porque não?, perguntou-se Caridad. Era o mesmo
sorriso de seu Marcelo. Ofereceu-lhe o charuto. Excelente! De onde tiraste esta
maravilha?, exclamou o rapaz depois de prová-lo e tossir. de Cuba? Sim,
ouviu-se dizer Caridad enquanto voltava a pegar o charuto e o levava aos
lábios. Como te chamas? Caridad, respondeu ela entre uma nuvem de fumo. Gosto
de teu chapéu. O rapaz se movia inquieto sobre as pernas. Esperava outra passa,
que afinal chegou. Já sopra! O grito do capitão da tartana rompeu a quietude.
Das demais naus se ouviram exclamações similares. Soprava vento do sul, suficiente
para enfrentar a barra. O grumete lhe devolveu o charuto e correu para unir-se
aos outros marinheiros. Obrigado, pretinha, disse-lhe apressadamente.
À
diferença dos demais passageiros, Caridad não presenciou a difícil manobra náutica
que requeria três mudanças de rumo no estreito canal. Ao longo da desembocadura
do Guadalquivir, em terra ou nas barcaças que se achavam amarradas em suas
margens, acenderam-se sinais luminosos para guiar as embarcações. Tampouco
viveu a tensão com que todos enfrentaram a travessia: se o vento amainava e
ficavam no meio de caminho, existiam muitas possibilidades de encalhar.
Permaneceu sentada contra a borda, fumando, a desfrutar de um agradável
formigueiro em todos os seus músculos e deixando que o tabaco nublasse os
sentidos. No momento em que a tartana se introduziu no temível Canal dos
Ingleses, com a torre de São Jacinto iluminando seu rumo a bombordo, Caridad
começou a cantarolar ao compasso da lembrança de suas festas dominicais,
quando, depois de celebrar a missa no engenho de açúcar mais próximo que dispunha
de sacerdote, os escravos das diversas fazendas se reuniam no barracão da fazenda
a que haviam ido com seus senhores. Ali os brancos lhes permitiam cantar e dançar,
como se fossem crianças que necessitassem espairecer e esquecer a dureza de
seus trabalhos. Mas a cada som e a cada passo de dança, quando falavam os
tambores batás, a mãe de todos eles, o grande tambor iyá, o itótele,
ou o menor, o okónkolo, os negros rendiam culto a seus deuses, disfarçados
de virgens e santos cristãos, e recordavam com nostalgia as suas origens africanas».
In
Ildefonso Falcones, A Rainha Descalça, 2013, tradução de Rita Custódio e Alex
Tarradellas, Bertrand Editora, Lisboa, 2014, ISBN 978-972-252-815-3.
Cortesia BertrandE/JDACT