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«Uma catedral construída pelo povo e para
o povo na Barcelona medieval é o cenário de uma apaixonante história de
intriga, violência e paixão. Século XIV. A cidade de Barcelona encontra-se no
auge da prosperidade; cresceu até ao humilde bairro dos pescadores, cujos
habitantes decidem construir, com o dinheiro de uns e o esforço de outros, o
maior templo mariano conhecido: Santa
Maria do Mar. Uma construção paralela à desditosa história de Arnau, um
servo da terra que foge dos abusos do seu senhor feudal e que se refugia em
Barcelona. Daqui se torna cidadão e, assim, num homem livre. O jovem Arnau
trabalha como estivador, palafreneiro, soldado e cambista. Uma vida extenuante,
sempre à sombra da Catedral do Mar, que o tirará da condição miserável de
fugitivo para lhe dar nobreza e riqueza. Mas com esta posição privilegiada
chega também a inveja dos seus pares, que tramam uma sórdida conspiração que
põe a sua vida nas mãos da Inquisição (maldita)... Lealdade e vingança, traição e amor, guerra e
peste, num mundo marcado pela intolerância religiosa, a ambição material e a
segregação social. Um romance absorvente, mas também uma fascinante e ambiciosa
recriação das luzes e sombras do mundo feudal. Das primeiras memórias de
infância, em que encontrou refúgio na Catedral da cidade, à decisão de escrever
um romance que revelasse a verdadeira origem daquele lugar de culto, o autor
dedicou-se a uma intensa investigação sobre a sociedade catalã do século XIV. Da
prosperidade da cidade às gentes que ali viviam e cruzavam, dos escravos aos
artesãos, dos judeus à condição da mulher, o autor traça um fabuloso e vivo
quadro da Barcelona medieval».
Servos
da terra. Ano de 1320. Quinta de Bernat Estanyol Navarcles. Principado da
Catalunha
«Num
momento em que ninguém parecia prestar-lhe atenção, Bernat ergueu o olhar para
olímpido céu azul. O sol ténue de finais de Setembro acariciava os rostos dos
seus convidados. Investira tantas horas e esforços na preparação daquela festa,
que apenas um tempo inclemente poderia deslustrá-la. Bernat sorriu para o céu
outonal e, quando baixou o olhar, o sorriso acentuou-se, ao escutar o alvoroço
que reinava no terreiro empedrado que se abria em frente à porta dos currais,
no piso térreo da casa rural. A trintena de convidados estava exultante: a
vindima desse ano fora esplêndida. Todos, homens, mulheres e crianças, tinham
trabalhado de sol a sol, primeiro apanhando as uvas e depois pisando-as, sem se
permitirem um dia de descanso. Só quando o vinho estava já pronto para
fermentar nas barricas e o mosto da uva já estava armazenado para destilar o
bagaço durante os entediantes dias de Inverno, os camponeses celebraram as
festas de Setembro. E Bernat Estanyol decidira contrair matrimónio durante
esses dias. Bernat observou os seus convidados. Tiveram de se levantar de
madrugada para percorrerem a pé a distância, em alguns casos muito grande, que
separava as suas quintas da dos Estanyol. Conversavam animadamente, talvez
acerca da boda, talvez acerca da colheita, talvez acerca de ambas as coisas;
alguns, como o grupo em que se incluíam os seus primos Estanyol e a família Puig,
parentes do cunhado, soltavam gargalhadas e olhavam-no com picardia. Bernat
notou que estava a corar e eludiu a insinuação; não queria sequer imaginar a
causa daqueles risos. Espalhados pelo terreiro da casa rural, distinguiu os
Fontaníes, os Vila, os Joaniquet e, evidentemente, os familiares da noiva: os
Esteve.
Bernat
olhou discretamente para o sogro, Pere Esteve, que não fazia outra coisa senão passear
a sua imensa barriga, sorrindo para uns e dirigindo-se de imediato para outros.
Pere voltou o seu rosto alegre para ele, e Bernat viu-se obrigado a saudá-lo
pela enésima vez. Depois, procurou com o olhar os cunhados e encontrou-os
misturados com os outros convidados. Desde o primeiro momento que o tinham
tratado com algum receio, apesar do muito que se tinha esforçado por
conquistá-los. Bernat voltou a erguer o olhar para o céu. A colheita e o tempo
tinham decidido acompanhá-lo na sua festa. Olhou para a casa e depois de novo
para as pessoas, e cerrou ligeiramente os lábios. De repente, apesar da
agitação reinante, sentiu-se só. Apenas passara um ano desde que o pai
falecera; quanto a Guiamona, sua irmã, que se instalara em Barcelona depois de
casar, não tinha dado resposta aos recados que lhe tinha enviado, apesar do
muito que teria gostado de revê-la. Era a única pessoa de família directa que
lhe restava, desde a morte do pai... Uma morte que tinha transformado a casa
dos Estanyol no centro de interesse de toda a região: casamenteiras e pais com
filhas nubentes tinham desfilado por aquela casa incessantemente. Antes,
ninguém os vinha visitar; mas a morte do pai, a quem os acessos de rebeldia tinham
feito merecer o cognome de o louco Estanyol, tinha devolvido as
esperanças àqueles que desejavam casar uma filha com o lavrador mais rico da
região. Já és suficientemente adulto para casar, diziam-lhe. Quantos anos tens?
Vinte e sete, creio eu, respondia. Com essa idade, já quase devias ter netos,
recriminavam-no. Que vais fazer sozinho nesta casa? Precisas de uma mulher.
Bernat
recebia estes conselhos com paciência, sabendo que seriam inexoravelmente
seguidos pela menção de uma candidata cujas virtudes superavam a força do touro
e a beleza do mais incrível pôr do Sol. O assunto não lhe era desconhecido. Já
o louco Estanyol, viúvo desde que nascera Guiamona, tinha tentado casá-lo, mas
todos os pais de filhas casadoiras tinham saído da casa lançando imprecações:
ninguém conseguia fazer frente às exigências do louco Estanyol quanto ao dote
que a nora deveria trazer. Assim, o interesse por Bernat foi decaindo. Com a
idade, o ancião piorou, e os seus desvarios de rebeldia foram-se tornando
delirantes. Bernat dedicou-se ao cuidado das terras e do pai e, de repente, aos
vinte e sete anos, viu-se só e assediado. No entanto, a primeira visita que
Bernat recebeu, quando ainda nem tinha sido enterrado o defunto, foi a do
aguazil do senhor de Navarcles, seu senhor feudal. Quanta razão tu tinhas, pai!,
pensou Bernat ao ver chegar o aguazil e vários soldados a cavalo. Quando eu
morrer, repetira-lhe o velho até à exaustão nos momentos em que recuperava a
mansidão, eles hão-de vir; nessa altura, terás de lhes mostrar o testamento. E apontava
com um gesto para a pedra sob a qual, envolto em couro, se encontrava o
documento que recolhia as últimas vontades do louco Estanyol.
Porquê,
pai?, perguntara Bernat da primeira vez que o pai lhe fizera a esta
advertência. Como muito bem sabes, respondera-lhe o velho, possuímos estas
terras em enfiteuse, mas eu sou
viúvo, e se não tivesse feito testamento, por minha morte o senhor feudal teria
direito a ficar com metade de todos os nossos móveis e animais. Chama-se a esse
direito intestia; há muitos outros a
favor dos senhores, e deves conhecê-los a todos. Eles virão, Bernat; virão para
levarem o que é nosso, e só se lhes mostrares o testamento poderás livrar-te
deles. E se mo tiram?, perguntara Bernat. Bem sabes como eles são... Mesmo que
o fizessem, está registado em livros. A ira do aguazil e do seu senhor correu
pela região, e tornou ainda mais atractiva a situação do órfão, herdeiro de
todos os bens do louco. Bernat lembrava-se bem da visita que lhe fizera o agora
seu sogro, antes do começo da vindima. Cinco soldos, um colchão e uma camisa
branca de linho; esse era o dote que oferecia pela sua filha Francesca. Para
que quero eu uma camisa branca de linho?, perguntou Bernat sem parar de revolver
a palha no piso térreo da casa. Olha
para ali, respondeu Pere Esteve. Apoiando-se sobre a forquilha, Bernat olhou
para onde Pere Esteve apontava: para a entrada do estábulo. A forquilha caiu
sobre a palha. Em contraluz, surgira Francesca, vestida com a camisa branca de
linho... Todo o corpo da rapariga se lhe oferecia através dela!» In Ildefonso
Falcones, A Catedral do Mar, 2006, Bertrand Editora, 2009, ISBN 978-972-251-511-5.
Cortesia de
BertrandE/JDACT