segunda-feira, 1 de agosto de 2016

A representação medieval dos tempos troianos na versão galega da Crónica Troiana de Afonso XI. Pedro Chambel. «… originando que da Antiguidade, os autores do século XII apenas tivessem retido o eterno actual, os clérigos que elaboraram os primeiros romans»

Cortesia de wikipedia e jdact

A Narrativa de Troilo, Diomedes e Briseide. A Matéria Antiga e a Sociedade Cavaleiresca
«(…) Ora, a partir da análise da narrativa protagonizada por Troilo, Diomedes e pela filha de Calcas, podemos constatar como nela se expressa uma visão medieval dos tempos troianos. Esta estabelece-se, não só pela presença dos temas relacionados com o amor cortês e com as características e comportamentos das personagens, como pela introdução do maravilhoso, das referências religiosas ou, ainda, pela forma como surgem descritas as batalhas e justas entre os dois protagonistas masculinos. Neste sentido, a cada passo, deparamos com o anacronismo da representação histórica da Antiguidade. Historiadores da literatura medieval como Jean Frappier, Reynaud de Lage, Erich Köhler ou Carlos Garcia Gual, assinalaram como tal anacronismo não se pode explicar unicamente em função de uma pretensa ingenuidade dos autores dos romances de temática clássica. Se Etienne Gilson caracterizou o pensamento medieval como absorvido pela intensidade do presente, originando que da Antiguidade, os autores do século XII apenas tivessem retido o eterno actual, os clérigos que elaboraram os primeiros romans, tiveram acesso, ainda que parcial, às obras dos autores clássicos, então considerados como autoridades, o que, em última análise, justifica que não pudessem entender o passado como uma mera recriação do presente. É certo, porém, que, perante tais fontes, não desenvolveram um espírito crítico, enquanto, por outro lado, apenas conheceram as obras dos autores clássicos, muitas vezes, a partir de fontes tardias, mas tal não explica na sua totalidade a visão medieval que expressam nas narrativas de temática antiga.
Segundo Carlos Garcia Gual, ao descreverem um mundo onde a cavalaria tinha uma função permanente, os autores medievais reflectiam os anseios do público cavaleiresco que constituía o seu auditório. Assim, eternizando num espelho ideal a sua situação e o seu papel histórico, propunham exemplos mais compreensivos e imediatos para os leitores/ouvintes, e se não manifestam um melhor conhecimento dos costumes antigos, tal não se deveu tanto à ignorância dos clérigos como, segundo o mesmo autor, pela falta de interesse por este aspecto. A estas circunstâncias podemos ainda acrescentar a introdução nos romances dos motivos que caracterizavam o gosto literário da época, como é o caso das temáticas relacionadas com o amor cortês, assim, como a influência das técnicas narrativas, então, utilizadas.
Ora, se na versão galega da Crónica Troiana, ainda se encontram muitos elementos que caracterizam, quer as epopeias antigas, quer as medievais, não deixa de se encontrar presente uma aproximação aos ideais e anseios do mundo cavaleiresco. Neste sentido, Erich Köhler defende que ao fazer remontar à Antiguidade, não só a origem da sociedade cavaleiresca como a união entre os princípios que idealmente a regiam e a clergie, os autores dos romances do Ciclo Clássico justificavam ideologicamente as ambições e o protagonismo que para si advogava a cavalaria na sociedade da época. Para Erich Köhler, contribuíram, assim, de manière décisive à l’élaboration d’une conscience nouvelle, autonome, à la fois individuelle et social, revelando a matéria antiga à cavalaria une dimension historique qu’elle ignorait totalement…, en transformant le style des héros antiques pratiquement sur ce que Chrétien formula dans son programme: la double vocation historique de la chevalerie en tant qu’agent dune civilisation universelle et garant de l’ordre. On peut appliquer au roman courtois ce que Gilson a dit de la conscience historique du Moyen Age en général (…) il (le Moyen Age) a accepté et revendiqué comme une honneur le rôle de transmetteur d’une civilisation qui lui était dévolu. Em suma, l’ère chevaleresque apparaît désormais comme l’époque qui a absorbé les époques antérieures et qui les couronne en donnant un sens et un but de succession. En référent au chevalier le couple chevalerie-clergie, dont il sera désormais l’incarnation, la littérature courtoise confère à son existence qui réunit ces deux qualités suprêmes une valeur insurpassable proclament la finalité de l’histoire humaine.
Assim, se na sequência da caracterização de Etienne Gilson da noção de tempo medieval como absorvida pelo presente, Aron Gurevitch e Jacques Le Goff explicaram o anacronismo da representação do passado nos autores medievais, referenciando, ora a sua consciência histórica como anti-histórica, ora assinalando o seu lento desenvolvimento, teremos de ter em conta que, ao surgir nos romances antigos uma caracterização das personagens segundo o modelo feudal, associando-as aos comportamentos e funções ideais da sociedade cortesã, eles acabam por transmitir uma função ideológica que, em última análise, corresponde aos anseios do público a quem eram dirigidos e que os patrocinaram, ao mesmo tempo que justificavam as funções sociais reivindicadas pela sociedade cavaleiresca.
No que respeita à representação medieval dos tempos troianos na versão galega da Crónica Troiana, ela só pode ser entendida quando contextualizada na obra que a originou, ou seja, o Roman de Troie, uma das obras que formou a Matéria Antiga. Apresentando este, pelas razões atrás expostas, uma visão medieval da Antiguidade, a sua versão prosificada em galego que foi objecto do nosso estudo, também a transmite, obedecendo, assim, ao gosto do público medieval pelos temas que a obra de Benoit de Saint-Maur expõe na sua recriação do passado». In Pedro Chambel, A representação medieval dos tempos troianos na versão galega da Crónica Troiana de Afonso XI, Instituto de Estudos Medievais, IEM, Ano 4, Nº 5, 2008, ISSN 1646-740X.


Cortesia de IEM/JDACT