quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Até que o Amor me Mate. Maria Lopo de Carvalho. «Quando o conheci era já mulher casada, mãe de três filhos, Antoninho, Joana e Fernando. Estava certa de que muitos mais se seguiriam, pois que o senhor meu marido não havia noite que me não procurasse»

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As Mulheres de Camões
Violante de Andrade. 1543
«(…) Sei hoje que Luís Vaz não é dado a favores e mercês, que troca o mofo das rezas pelo assobio dos becos e as paredes frias da universidade pelo saber castiço das vielas, dos arcos e dos passadiços, a vida recta e regrada pela recurvada folgança das escadinhas e dos postigos, o decoro e a devoção pela perdição das tabernas e dos duelos. É galante com desenfado, aprazível com primor, cortês com graça! Mais do que rapaz buliçoso e valentão, é ardente e peca. Oh se peca!!!... É mesmo essa uma das maiores virtudes que lhe acho, pois que na santidade, que por dever e devoção apregoo, nunca achei encanto algum. Quando com ele me cruzei em Coimbra, onde o meu marido ocupava o cargo de comendador da Ordem de Cristo em São Martinho do Bispo, era Luís Vaz um mancebo como os demais, que ora estudava ora fazia gazeta para ir apanhar a brisa fresca do Mondego. Soube depois que se desviava muitas vezes dos estudos por influência de Jorge Montemor, um estroina mais sabido e manhoso do que uma raposa velha. Pior companhia não podia existir. Devo ser apenas um tudo-nada mais velha do que Luís Vaz. Quando o conheci era já mulher casada, mãe de três filhos, Antoninho, Joana e Fernando. Estava certa de que muitos mais se seguiriam, pois que o senhor meu marido não havia noite que me não procurasse, a não ser quando se me dava por certa a prenhez. Mal o vi, logo quis saber quem era. A minha dama corava de aflição. Então a senhora condessa não sabe? É o valdevinos do sobrinho de padre Bento, o prior do Convento de Santa Cruz e chanceler da Universidade de Coimbra. Fiz um gesto para que a liteira abrandasse e fiquei a vê-lo passar. Tinha um olhar luminoso, era cheio de rosto e largo de fronte, nariz não pequeno e lábios que se adivinhavam varonis, ainda que velados pela barba arruivada. Trazia uma camisa bordada por debaixo do pelote e um chapéu de abas curtas. Cruzava e descruzava as pontas da capa negra enquanto falava. Aqueles anéis de cabelo cor de chama até aos ombros e o rosto coberto pela barba bem aparada tornavam-no em tudo raro. Havia nele uma inusitada centelha. Era hábito verem-se os escolares percorrer as ruas a cantar versos e rimas populares, seguidos por uma roda de raparigas. Desde que a universidade passou a Coimbra, sangue novo acorreu à cidade. Indaguei onde morava.
Tal como a minha avisada dama mo dissera, o rapaz era sobrinho do padre Bento Camões, conceituado prelado, e vivia em Coimbra com outros alunos dos Estudos Gerais. Diziam-no um tanto excêntrico, impaciente, estouvado e violento, parecendo viver certa vida oculta a que não queria renunciar. Porém, não desisti do meu intento. Havia de trazer Luís Vaz para perto de mim. Francisco Morais acabou por ceder. Colheu tudo o que pôde sobre o mancebo e lavrou a sua sentença: Luís Vaz, ainda que não sendo nobre mas tão-só descendente de cavaleiro-fidalgo, era profundo conhecedor das línguas modernas, espanhola e italiana, tinha leitura dos gregos e dos latinos e estudos de geografia, história, mitologia e cosmografia. Conhecia a nova cartilha da Grammatica de Língua Portuguesa de João Barros, seu companheiro de criação, moço de guarda-roupa e amigo íntimo do rei, e conjugava todos estes refinados saberes com avultada mestria em lendas, cantigas e romances populares. Tinha ainda uma memória segura e a réplica na ponte da língua (o que a mim me quis parecer ideal..., para doutrinar Antoninho). Ainda assim, dizia-me Francisco Morais, haverá melhor, não nos precipitemos numa escolha que pode não ser a mais conveniente. Sabia que, dobrado o conselheiro, dobrado estaria o senhor meu marido. Carecia tão-só do acordo de padre Bento. tio de Luís Vaz, chanceler da universidade. Aí não contava encontrar grande estorvo: que melhor futuro poderia padre Bento querer para o sobrinho do que tornar-se mestre do primogénito de Linhares? Estava segura de que não levantaria um dedo que fosse para contrariar a entrada de Luís Vaz em minha casa.
Uma outra noite, já aqui em Xabregas, cismei nas doces e claras águas do Mondego, de que me achava apartada, e delas e desse apartamento passei ao vislumbre primeiro que tivera de Luís Vaz. Poeta, soldado, mestre de estudos, poderia Luís Vaz vir a ser qualquer destas muitas e variadas coisas. Se não me aviasse, ainda mo despachavam para além-mar. Acendi a candeia, decidida: desejo tomar Luís Vaz Camões para mestre e preceptor de meu filho António Noronha, e sem mais assinei Violante Noronha, condessa de Linhares. Mau grado a tenra idade, o meu Antoninho já mostrava grande apego a histórias e feitos de cavalaria: Luís Vaz seria de bom préstimo. E posto que não era rico, o soldo que estava disposta a pagar-lhe falaria mais alto. Sabendo que passara a Lisboa, pedi que lhe entregassem de prestes a minha mensagem. Mas, senhora condessa, ninguém sabe onde pernoita..., contrapôs a minha criada num fio de voz, e são ainda quatro horas, nem tocaram as matinas. Nunca gostei de ser contestada, menos ainda por uma humilde criada. Ergui os ombros e cruzei o quarto em passos largos, avançando com o queixo para a frente como faço sempre que quero ser obedecida. A rapariga tremia dos pés à cabeça. As minhas ordens são para ser cumpridas. Procurem um mancebo barbirruivo, com família na Mouraria. Por esta altura, terá já descido à capital, ordenei, tentando não mostrar mais do que apenas autoridade. Vamos tentar, senhora condessa. Tentar???» In Maria João Lopo de Carvalho, Oficina do Livro, LeYa, 2016, ISBN -978-989-741-488-6.

Cortesia de OdoLivro/JDACT