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As
Mulheres de Camões
Violante
de Andrade. 1543
«(…)
Sei hoje que Luís Vaz não é dado a favores e mercês, que troca o mofo das rezas
pelo assobio dos becos e as paredes frias da universidade pelo saber castiço
das vielas, dos arcos e dos passadiços, a vida recta e regrada pela recurvada
folgança das escadinhas e dos postigos, o decoro e a devoção pela perdição das
tabernas e dos duelos. É galante com desenfado, aprazível com primor, cortês
com graça! Mais do que rapaz buliçoso e valentão, é ardente e peca. Oh se
peca!!!... É mesmo essa uma das maiores virtudes que lhe acho, pois que na santidade,
que por dever e devoção apregoo, nunca achei encanto algum. Quando com ele me
cruzei em Coimbra, onde o meu marido ocupava o cargo de comendador da Ordem de
Cristo em São Martinho do Bispo, era Luís Vaz um mancebo como os demais, que
ora estudava ora fazia gazeta para ir apanhar a brisa fresca do Mondego. Soube
depois que se desviava muitas vezes dos estudos por influência de Jorge
Montemor, um estroina mais sabido e manhoso do que uma raposa velha. Pior
companhia não podia existir. Devo ser apenas um tudo-nada mais velha do que
Luís Vaz. Quando o conheci era já mulher casada, mãe de três filhos, Antoninho,
Joana e Fernando. Estava certa de que muitos mais se seguiriam, pois que o
senhor meu marido não havia noite que me não procurasse, a não ser quando se me
dava por certa a prenhez. Mal o vi, logo quis saber quem era. A minha dama
corava de aflição. Então a senhora condessa não sabe? É o valdevinos do
sobrinho de padre Bento, o prior do Convento de Santa Cruz e chanceler da Universidade
de Coimbra. Fiz um gesto para que a liteira abrandasse e fiquei a vê-lo passar.
Tinha um olhar luminoso, era cheio de rosto e largo de fronte, nariz não
pequeno e lábios que se adivinhavam varonis, ainda que velados pela barba
arruivada. Trazia uma camisa bordada por debaixo do pelote e um chapéu de abas
curtas. Cruzava e descruzava as pontas da capa negra enquanto falava. Aqueles
anéis de cabelo cor de chama até aos ombros e o rosto coberto pela barba bem
aparada tornavam-no em tudo raro. Havia nele uma inusitada centelha. Era hábito
verem-se os escolares percorrer as ruas a cantar versos e rimas populares,
seguidos por uma roda de raparigas. Desde que a universidade passou a Coimbra,
sangue novo acorreu à cidade. Indaguei onde morava.
Tal
como a minha avisada dama mo dissera, o rapaz era sobrinho do padre Bento Camões,
conceituado prelado, e vivia em Coimbra com outros alunos dos Estudos Gerais.
Diziam-no um tanto excêntrico, impaciente, estouvado e violento, parecendo
viver certa vida oculta a que não queria renunciar. Porém, não desisti do meu
intento. Havia de trazer Luís Vaz para perto de mim. Francisco Morais acabou
por ceder. Colheu tudo o que pôde sobre o mancebo e lavrou a sua sentença: Luís
Vaz, ainda que não sendo nobre mas tão-só descendente de cavaleiro-fidalgo, era
profundo conhecedor das línguas modernas, espanhola e italiana, tinha leitura
dos gregos e dos latinos e estudos de geografia, história, mitologia e
cosmografia. Conhecia a nova cartilha da Grammatica
de Língua Portuguesa de João Barros, seu companheiro de criação, moço de guarda-roupa
e amigo íntimo do rei, e conjugava todos estes refinados saberes com avultada
mestria em lendas, cantigas e romances populares. Tinha ainda uma memória
segura e a réplica na ponte da língua (o que a mim me quis parecer ideal...,
para doutrinar Antoninho). Ainda assim, dizia-me Francisco Morais, haverá
melhor, não nos precipitemos numa escolha que pode não ser a mais conveniente.
Sabia que, dobrado o conselheiro, dobrado estaria o senhor meu marido. Carecia
tão-só do acordo de padre Bento. tio de Luís Vaz, chanceler da universidade. Aí
não contava encontrar grande estorvo: que melhor futuro poderia padre Bento
querer para o sobrinho do que tornar-se mestre do primogénito de Linhares?
Estava segura de que não levantaria um dedo que fosse para contrariar a entrada
de Luís Vaz em minha casa.
Uma
outra noite, já aqui em Xabregas, cismei nas doces e claras águas do Mondego,
de que me achava apartada, e delas e desse apartamento passei ao vislumbre primeiro
que tivera de Luís Vaz. Poeta, soldado, mestre de estudos, poderia Luís Vaz vir
a ser qualquer destas muitas e variadas coisas. Se não me aviasse, ainda mo
despachavam para além-mar. Acendi a candeia, decidida: desejo tomar Luís Vaz
Camões para mestre e preceptor de meu filho António Noronha, e sem mais assinei
Violante Noronha, condessa de Linhares. Mau grado a tenra idade, o meu Antoninho
já mostrava grande apego a histórias e feitos de cavalaria: Luís Vaz seria de
bom préstimo. E posto que não era rico, o soldo que estava disposta a pagar-lhe
falaria mais alto. Sabendo que passara a Lisboa, pedi que lhe entregassem de
prestes a minha mensagem. Mas, senhora condessa, ninguém sabe onde pernoita...,
contrapôs a minha criada num fio de voz, e são ainda quatro horas, nem tocaram
as matinas. Nunca gostei de ser contestada, menos ainda por uma humilde criada.
Ergui os ombros e cruzei o quarto em passos largos, avançando com o queixo para
a frente como faço sempre que quero ser obedecida. A rapariga tremia dos pés à
cabeça. As minhas ordens são para ser cumpridas. Procurem um mancebo
barbirruivo, com família na Mouraria. Por esta altura, terá já descido à
capital, ordenei, tentando não mostrar mais do que apenas autoridade. Vamos
tentar, senhora condessa. Tentar???» In Maria João Lopo de Carvalho, Oficina do
Livro, LeYa, 2016, ISBN -978-989-741-488-6.
Cortesia de OdoLivro/JDACT