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«(…)
Como sempre, seu jeito de metralhadora me pegou desprevenida e senti minha
coragem se esvair. Nada mau. Na verdade até que encheu bastante. Qual era o
assunto, mesmo? Bom... Tentei sorrir. Não havia como dizer que eu tinha
ignorado o seu conselho. Eu estava meio com pressa... Os olhos de Katherine se
transformaram em duas fendas. Cravados em um rosto marcado pela disciplina e
emoldurado por cabelos tão curtos que poderiam ter sido confundidos com um
penteado da moda, seus olhos eram sempre muito vívidos e de um azul-turquesa
raro, incandescente, como cristais incrustados em estanho. Na maioria das vezes
eles reluziam de irritação, mas eu já aprendera que isso era também sua forma
natural de interacção com pessoas que, na realidade, haviam conquistado o seu
respeito. Bem nessa hora, uma onda de entusiasmo varreu o recinto. Aliviada por
Katherine ter se distraído por um instante, virei-me para ver quem tinha
chegado ainda mais atrasado do que eu e apesar disso ser o queridinho da festa.
Mas é claro. James Moselane. Aqui!, chamou Katherine, erguendo de novo o braço
no gesto impaciente de quem nunca aceita um não como resposta. Kate. James
cumprimentou a grande dame com o
aperto de mão que ela esperava. Obrigado pela crítica no Quarterly. Eu com
certeza não mereço. Só então ele reparou em mim. Ah, Morg. Não tinha visto. Por
mim, tudo bem. Porque toda vez que James Moselane entrava em algum lugar, eu
levava alguns minutos para conseguir controlar os lóbulos frontais do meu
cérebro. Na madura e responsável idade de 28 anos, era terrível se pegar tacteando
em busca de alguma migalha de sofisticação e mais constrangedor ainda ter
certeza de que todos ao meu redor haviam reparado nas minhas faces coradas e
tirado a conclusão certa. Para um membro da comunidade académica, James era
mais atraente do que o normal. De alguma forma, conseguira escapar à velha
máxima de que o primeiro em matéria de inteligência era sempre o último em
matéria de beleza. Mesmo possuindo uma massa cinzenta incrivelmente activa, sua
cabeça era também coroada por uma profusão de belos cabelos
castanho-avermelhados e, aos 33 anos, seu rosto sem marcas continuava a exercer
um charme juvenil. Como se não
bastasse, seu pai, lorde Moselane, era dono de uma das mais belas colecções de
esculturas antigas do país. Em outras palavras, James era o único homem mais
príncipe do que sapo que eu já conhecera. Diana fez uma apresentação hoje,
informou-lhe a professora Kent. Ainda estou tentando saber qual foi o título. James
me lançou um olhar de esguelha, cúmplice.
Ouvi
dizer que foi bom. Grata por aquele socorro, ri e enxuguei uma gotinha da
têmpora. Era uma gota de suor deixada no meu cabelo pela máscara de esgrima,
mas torci para James interpretá-la como indício de uma chuveirada recente. É
muito gentil. Mas quais são as novidades? Outra carta de amor suicida de alguma
aluna? Bem nessa hora, a sineta do jantar tocou e todos começaram a sair da
sala. As conversas foram suspensas enquanto nosso pequeno cortejo descia a
escada, atravessava o pátio dos fundos sob uma chuva fina e entrava em pares
solenes no grandioso refeitório da faculdade. Todos os alunos se levantaram dos
bancos enquanto subíamos o corredor até à mesa dos docentes, instalada sobre um
estrado nos fundos do recinto. Quando sentei na cadeira reservada para mim,
tive a nítida consciência de todos aqueles olhos a me encarar. Ou o mais
provável era que estivessem encarando James, que se sentou bem ao meu lado,
lindo de morrer e surpreendentemente à vontade na beca preta, quase um príncipe
Tudor na corte. Ânimo, garota, disse ele, entre os dentes, enquanto o responsável
pelo jantar servia o vinho. Fiquei sabendo por uma óptima fonte que não teve
nada de errado com a sua apresentação de hoje. Olhei para ele, esperançosa.
Todos concordavam que James era um astro do mundo académico, e sua lista de
publicações bastava para fazer com que a maioria dos colegas parecessem
minúsculas luas em órbitas frágeis. Então por que ninguém falou nada? O que
alguém poderia ter falado? James provou com deleite sua entrada. Depois de
serem atacados pela sua narrativa de mulheres guerreiras suadas vestidas com
botas de pele animal e biquinis de cota de malha... Eles são académicos,
caramba. Fique feliz por ninguém ter enfartado. Usei o guardanapo para abafar
uma risada. Eu devia ter feito uma apresentação em slides. Talvez assim finalmente tivesse conseguido me livrar do
professor Vandenbosch... Morg... James me encarou com aqueles olhos. Olhos que
me diziam que eu só estava vendo a pontinha de seus pensamentos. Sabe que o
professor Vandenbosch tem 400 anos. Ele já estava aqui muito antes de a gente
chegar e vai continuar muito depois de você e eu batermos as botas. Pare de
implicar com o coitado. Ah, sério! Estou falando muito sério. Mais uma vez, seu
olhar cor de mel foi além de nossa brincadeira. Morg, você tem muito talento.
De verdade. Mas é preciso mais do que talento para ter sucesso por aqui. Talvez
para suavizar a crítica, ele sorriu. Escute o conselho de um chef veterano: não dá para requentar
para sempre a sopa velha das amazonas. Dito
isso, ele ergueu sua taça para um brinde conspiratório, mas poderia muito bem
ter jogado o vinho na minha cara. Entendi». In Anne Fortier, A Irmandade
Perdida, 2014, Editora Arqueiro, 2015, ISBN 978-858-041-543-0.
Cortesia
de EArqueiro/JDACT