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Poetas
e amantes
«(…)
Enquanto Jaber, o Longo, esquecido
por todos, rasteja para a taberna mais próxima e se esgueira lá para dentro,
prometendo a si próprio nunca mais se aventurar lá fora, Omar consegue reerguer-se
sem a ajuda de ninguém. Caminha direito, em silêncio; o seu trejeito altivo
cobre, como um púdico véu, as suas vestes esfarrapadas e o seu rosto
ensanguentado. À sua frente, milicianos munidos de archotes abrem passagem.
Atrás dele, vêm os seus agressores, seguidos do cortejo de basbaques. Omar não
os vê, não os ouve. Para ele, as ruas estão desertas, a Terra está silenciosa e
o céu sem nuvens, e Samarcanda continua a ser o lugar de sonho que ele
descobriu alguns dias antes. Chegou ali após três semanas de viagem e, sem
tomar o mínimo repouso, decidiu seguir à risca os conselhos dos viajantes de
tempos idos. Subi, convidam eles, ao terraço do Kuhandiz, a velha cidadela,
passeai amplamente o vosso olhar: não vereis senão águas e verdura, canteiros
floridos e ciprestes podados pelos mais subtis jardineiros, em forma de bois,
de elefantes, de camelos agachados, de panteras que se defrontam e parecem prontas
a saltar. De facto, no próprio interior do recinto, da porta do mosteiro, a
oeste, até à Porta da China, Omar apenas viu densos pomares e riachos
cristalinos. Depois, aqui e além, o arremesso de um minarete de tijolo, uma
cúpula cinzelada de sombra, a brancura do muro de um mirante. E, à beira de um charco,
acobertada pelos chorões, uma banhista nua que expunha a cabeleira ao vento ardente.
Terá sido esta visão de paraíso que pretendeu evocar o pintor anónimo que, muito
mais tarde, tentou ilustrar o manuscrito dos Robaiyat? Será, ainda ela que Omar conserva no espírito, enquanto o
levam para o bairro de Asfizar, onde mora Abu Taher, o cádi dos cádis de Samarcanda?
Dentro de si, ele não cessa de repetir: não odiarei esta cidade. Mesmo que a minha
banhista seja apenas uma miragem. Mesmo que a realidade tenha o rosto do homem da
cicatriz. Mesmo que esta noite fresca venha a ser para mim a última.
No
vasto divã do juiz, os longínquos candelabros dão a Khayyam uma tez de marfim.
Assim que entrou, dois, guardas de uma certa idade agarraram-no pelos ombros,
como se ele fosse um fanático perigoso. E, nesta postura, aguarda ao pé da
porta. Sentado no outro lado do compartimento, o cádi não reparou nele; está a
acabar de resolver um caso, conversa com os queixosos, argumenta com um deles,
admoesta o outro. Uma querela antiga entre vizinhos, segundo parece, rancores
repisados, argúcias irrisórias. Abu Taher acaba por manifestar ruidosamente a sua
lassidão, ordena aos dois chefes de família que se beijem, ali, à sua frente,
como se nada alguma vez os tivesse separado. Um deles dá um passo; o outro, um
colosso de testa estreita, retrai-se. O cádi esbofeteia-o com toda a força,
fazendo tremer a assistência. O gigante contempla por instantes aquela
personagem rechonchuda, colérica e buliçosa, que teve de se içar para o atingir,
e depois baixa a cabeça, limpa a face e obedece. Depois de mandar embora toda
esta gente, Abu Taher faz sinal aos milicianos para que se aproximem. Eles
debitam o seu relatório, respondem a algumas perguntas, esforçam-se por
explicar como puderam deixar que se formasse um tal ajuntamento nas ruas. Chega
a vez de o homem da cicatriz se justificar. Ele inclina-se para o cádi, que
parece conhecê-lo de longa data, e inicia um animado monólogo. Abu Taher
escuta-o atentamente, sem deixar adivinhar o seu sentimento. Depois, após
alguns momentos de reflexão, ordena: dizei à multidão que se disperse. Que
todos regressem a suas casas pelo caminho mais curto. E, dirigindo-se aos agressores:
vós voltai igualmente para vossas casas! Nada será decidido antes de amanhã. O
arguido ficará aqui esta noite, os meus guardas, e só eles, vigiá-lo-ão. Surpreendido
por se ver tão depressa convidado a eclipsar-se, o homem da cicatriz esboça um
protesto, mas logo reconsidera. Prudente, levanta as abas da túnica e retira-se
com uma vénia.
Ao
achar-se frente a Omar, tendo por únicas testemunhas os seus próprios homens de
confiança, Abu Taher profere esta enigmática frase de acolhimento: é uma honra
receber neste lugar o ilustre Omar Khayyam de Nichapur. Nem irónico nem
caloroso, o cádi. Nem a mínima aparência de emoção. Tom neutro, voz
inexpressiva, turbante em forma de túlipa, sobrancelhas fartas, barba grisalha
sem bigode, interminável olhar perscrutador. O acolhimento é tanto mais
ambíguo, pois Omar estava ali há uma hora, de pé e esfarrapado, sujeito a todos
os olhares, aos sorrisos, aos murmúrios. Após alguns segundos sabiamente destilados,
Abu Taher acrescenta: Omar, não és um desconhecido em Samarcanda. Apesar da tua
juventude, a tua ciência é já proverbial, as tuas proezas são contadas nas
escolas. Não é verdade que leste sete vezes, em Ispaão, uma volumosa obra de
Ibn Sina, e que, de regresso a Nichapur, a reproduziste de memória, palavra por
palavra?» In Amir Masalouf, Samarcanda, 1988, tradução de Paula Caetano,
Editorial Presença, Marcador Editora, 2015, ISBN 978-989-754-102-5.
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