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Ainda atira o corpo para a frente, convencido de poder apanhar-me o braço e
castigar o meu arrojo. Onde pensas que vais? Onde bem me apetecer, não
posso?... Só porque tens mundaira certa já te iulgas homem? Daqui não passarás,
não me podeis embargar..., olhai como passo adiante. Só lhe permito o aceno de
cabeça em sinal de reprovação, antes de galgar as pequenas escadas do pátio dos
claustros. Logo à direita entro na porta interior do paço, atrás do rapaz, para
vencer, agora colado a ele, mais oito degraus até ao nível dos cómodos de
serviço. Andamos umas polegadas, num corredor com janelas. Detemo-nos quando
alcançamos um átrio pequeno, com porta de entrada de almocreves e fornecedores,
e acesso directo ao pátio onde meu tio espera. Ninguém nos impede a passagem
para diante desta raia, que separa a zona dos serventes da área nobre destinada
à família real. O plano do mancebo é simples, conforme me confia, a meia voz.
Procuro outro varão da minha criação, dado a conversas com pajens e camareiras
e ele é de confiança? De confiança é. E não lhe dá cousa ser visto por maiores
do paço. Se ele conseguir contar-lhe o estranho recado, num ápice a tal dama
pode correr ao terreiro para acalmar o homem da mula ruça, capaz de morrer
roído de ânsias. Morrer não morre, descansa, agora vir por aí desabrido e
deixar o cavalo sozinho... Credo..., vamos então à procura de minguar o mal,
quanto antes. Passada a porta da cozinha a fervilhar de gente, depois a zona
das copas, esperamos uma aberta no vaivém de criados que arranjam e levam pratos
largos por um estreito corredor. Esta passagem é atravessada por outra, que
abre para todas as divisões da planta inferior. Do lado direito vemos duas
portas, a primeira com entrada para a sala de refeições diárias, a outra com
acesso à biblioteca, prolongada como braço para a Plaça del Palau. A esquerda
ficam a sala de bordar e a salinha de leitura, ambas com portas para a varanda
de trás, virada para o claustro. À frente deste corredor, apanhando a área das
salas de um lado e do outro, fica o Salão do Trono ou Sala dos Arcos Românicos,
com a porta principal de entrada no paço, à direita.
A
esta hora ainda os reposteiros que a separam do corredor estão afastados, para
os criados circularem sem estorvos. Os convidados já são muitos, a maior parte
de reinos vizinhos, confirmantes do casamento por procuração da filha de Pedro
com o rei de Portugal. Mas pela forma de trajar reconhecem-se embaixadores de
fora da Ibéria, prontos para a cerimónia daqui a pouco na catedral, à distância
de uns passos. Para lá deste salão, com tecto suportado por bela arcaria
românica, um portal de arco perfeito dá acesso a um átrio espaçoso. À esquerda
acho que fica a escada de acesso à planta superior. À direita é a entrada
directa para a capela real, colada à muralha romana. A minha vontade era romper
por ali, subir as escadas, explorar o ultimo piso. Em vez disso aceito a
sugestão do mancebo para voltar atrás uns passos. Ainda não há tanta gente que
dissimule duas presenças mal apostadas. Ficamos algum tempo meio escondidos à
entrada da biblioteca, onde se guardam os documentos importantes como o que vai
ser lavrado ainda hoje, no regresso da catedral. Ouvimos a porta principal a
fechar. Quer dizer que não falta ninguém, a Sala do Trono deve estar repleta.
Voltamos então a dar uns passos em frente, para assomar à entrada de olhos
esbugalhados. Diziam os criados que não podia haver festa? Nunca eu tinha visto
tanto lustro de baixelas, trajes, pedraria, habituado à austera nudez das casas
onde tenho entrada. Os cavaleiros reviram os olhos gulosos para mesas
compridas, ao longo das paredes, depois para as donzelas casadoiras como
qualquer varão humilde das charnecas ou dos montes.
Os
criados não páram. Carregam pratos de peixe fresco chegado há poucas horas do
cais, pão do melhor trigo dos campos de Zaragoza, frutos e vegetais frescos da
região de Valência. Alguns levam fornadas de pães mimosos de Castela, manjares
dos pueblos de Navarra. Outros ainda, aprumados como garças nas margens dos
sapais, carregam jarros de vinho maduro de além Pirenéus, do sueste do Midi, o
néctar das uvas de Vila Franca del Penedès, minha terra e de nosso rei. Mas
progressos na missão que nos traz aqui, nada. O moço desespera. Há tanto tempo
sem avistar o amigo teme pelo cavalo do lado de fora a imaginar o goliardo
ansioso pelo retorno da generosa dádiva. Decide então voltar à zona de serviço,
ele à frente eu atrás. Ambos confundidos com a fila de carregadores de giga às
costas, pegamos em ceirões amontoados pelo caminho mais estreito que conduz à
copa, à cozinha, acabando por pousá-los quando finalmente avistamos o mancebo que
procuramos.
Ay, senhor fremosa, posa Deus
Mal
cumpre a missão o moço das cavalariças volta ao trabalho, eu fico por ali,
inebriado com a intensidade de aromas. Sinto fome. Alheado do perigo de ser
descoberto como intruso, vou à cozinha catar coisa que se coma. Ninguém me agarra
o braço para me enxotar, não há ordens que me neguem a comida, ninguém pergunta
donde venho ou ao que vou. Satisfeito volto ao mesmo lugar. Será que ninguém dá
por mim se atravessar a sala, até ao átrio para lá da entrada? Arrisco,
procurando não tocar os corpos dos fidalgos, mais chegados às paredes com
janelas. Ponho o ouvido à escuta ao fundo das escadas que ligam à segunda
planta. Não ouço ruído que ameace a ousadia. De modo que vou por ali acima, a
galgá-las de um só fôlego, para vencer outro corredor de passagem estreita. Há portas
fechadas, talvez as câmaras reais com janelas para o largo. Alcanço a ultima,
levado pelo soar de vozes como brisa nos pinhais». In Maria Helena Ventura, Onde
Vais Isabel, Saída de Emergência, 2008, ISBN 978-989-637-034-3.
Cortesia de
SdeEmergência/JDACT