quarta-feira, 17 de agosto de 2016

A Obra Prima Desaparecida. Jonathan Harr. «As três telas conhecidas como o ciclo de Mateus jaziam nos recônditos da penumbra da igreja, na extremidade oposta da nave, num recesso designado por Cappella Contarelli»

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O inglês
«Francesca viu a obra de Caravaggio pela primeira vez quando tinha onze anos de idade. Fora na igreja de San Luigi dei Francesi, situada a curta distância da Piazza Navona. Aos domingos à tarde, o seu pai, um contabilista que trabalhava num escritório de advogados, costumava levá-la e às duas irmãs, envergando vestidos próprios para visitas à igreja, a passear pela cidade. Costumavam visitar as ruínas do Fórum ou os quadros e esculturas numa das grandiosas galerias ou igrejas da cidade. Francesca, a primogénita, costumava fazer um jogo, tentando associar os quadros aos artistas antes de consultar as informações. Com o passar do tempo, acabaria por conhecer os nomes dos mestres da Renascença e do Barroco italiano tal como os rapazes conhecem os nomes e as estatísticas dos futebolistas profissionais. Tinha bem presente o seu primeiro encontro com Caravaggio, um marco de luz brilhante na sua memória. As três telas conhecidas como o ciclo de Mateus jaziam nos recônditos da penumbra da igreja, na extremidade oposta da nave, num recesso designado por Cappella Contarelli. Pairava no ar um odor a fumo de velas e incenso. Uma luz pálida era filtrada para o interior da capela por um vitral semicircular quase opaco devido à poeira e à sujidade. No tempo de Caravaggio, a luz tremeluzente das velas teria iluminado a capela. Nos seus tempos de menina, para se obter iluminação, era necessário inserir uma moeda numa caixa. Quando a luz acendia, Francesca sentia-se como se tivesse deixado a igreja e estivesse no teatro. Os três quadros pareciam respirar, emanar calor e vida, captando um momento temporal como uma cena vislumbrada através da vidraça. Permanecia com as mãos pousadas no mármore frio e macio da capela, petrificada pelas ilustrações da vida de Mateus. O que mais a cativava era o quadro A Vocação de S. Mateus, que retratava uma cena passada numa taberna romana idêntica às que Caravaggio teria frequentado, com bancos de madeira e uma mesa decrépita, também ela de madeira, enquanto a luz do dia penetrava por uma porta entreaberta, incidindo sobre uma velha parede de estuque e repousando sobre o cobrador de impostos que viria a ser santificado. Mais tarde, quando começou a estudar História da Arte, Francesca ficou a saber que Caravaggio pintara o seu auto-retrato entre as figuras que se encontravam ao fundo d'O Martírio de S. Mateus. Tinha vinte e nove anos nessa altura, mas no quadro parecia mais velho, de barba, testa enrugada, a boca contorcida num esgar de consternação, os olhos repletos de angústia. A obra que ilustra S. Mateus, o seu primeiro trabalho público, trouxera-lhe fama e fortuna. Dez anos mais tarde, viria a morrer só, abandonado, em estranhas circunstâncias.
A investigação relativa às origens dos dois quadros de S. João ocupou Francesca e Laura todo aquele Inverno e parte da Primavera. Trabalhavam bem em equipa, apesar de adoptarem tácticas diferentes. Certa vez em que estabelecera uma comparação entre ambas, Correale afirmara sobre Francesca: é inteligente e intuitiva, mas assemelha-se a um cavalo de corrida em estado de agitação. Quanto a Laura: é metódica e científica, mais parecida com a mula que puxa o arado. Lautr fora a primeira da sua família a frequentar a universidade. Era baixa, atarracada e tinha uma pronúncia vincadamente romana, típica da classe operária, que não fazia qualquer esforço por atenuar. Tinha modos rudes e directos. Os pequenos trejeitos, os gracejos astuciosos, que são a essência da maioria das interacções sociais, eram-lhe estranhos. Eu tento ser educada, dizia de si mesma, mas, mesmo que não diga o que me vai na alma, não o consigo dissimular. Ambas haviam concluído o bacharelato na Universidade de Roma com as notas mais altas. Ambas tinham conseguido publicar a tese de final de curso no prestigiado jornal de arte Storia dell'Arte. Haviam integrado o programa de licenciatura, a especialização, como lhe chamam, no mesmo dia, e frequentado as mesmas disciplinas. Desenvolveu-se uma amizade entre ambas, mas daquelas amizades que se limitam às aulas e ao trabalho». In Jonathan Harr, A Obra Prima Desaparecida, 2005, Editorial Presença, Lisboa, 2006, ISBN 978-972-233-676-2.

Cortesia de EPresença/JDACT