Cortesia
de wikipedia e jdact
O túmulo do faraó
«Sob
o reinado de Ptolomeu Sóter, Hecateu de Abdera esteve no Egipto. Subiu o Nilo
até Tebas, a antiga capital das cem portas, cada uma delas tão ampla, segundo o
que constava a Homero, que permitia a passagem de duzentos soldados, incluídos
carros e cavalos. Ainda existiam, bem visíveis, os muros do templo de Amon.
Muros com 24 pés de espessura, 405 cúbitos de altura, com um perímetro de
dezenas e dezenas de estádios. Por dentro, tudo fora saqueado, desde que sobre
o Egipto abatera-se Cambises, o louco rei dos persas, um verdadeiro flagelo,
que até deportara para a Pérsia os artesãos egípcios, pensando em utilizá-los
para os palácios de Susa e Persépolis. Um pouco mais adiante, estavam os túmulos
reais. Delas restavam apenas dezassete. No vale das rainhas, os sacerdotes
mostraram-lhe o túmulo das concubinas de Zeus, as nobres princesas consagradas
à prostituição antes do matrimónio, em devoção ao deus. Mais além, deparou com
um imponente mausoléu. Era o túmulo de Ramsés II, o faraó que combatera na
Síria contra os hititas. Helenizado, seu nome seria Osimandias. Hecateu entrou.
O ingresso era um portal de sessenta metros de comprimento e vinte de altura.
Atravessou-o e se encontrou num peristilo com a forma de um quadrado, tendo cada
lado cerca de vinte metros de comprimento: o tecto era um bloco único de pedra
num azul profundo cravejado de estrelas. Esse céu estrelado era sustentado por
colunas de aproximadamente oito metros. Mais que colunas, eram, na realidade,
figuras esculpidas, uma diferente da outra, todas extraídas de blocos monolíticos.
À medida que prosseguia, Hecateu ia anotando a planta do edifício. Agora estava
novamente diante de um portal: semelhante ao da entrada, mas totalmente
decorado com relevos e dominado por três estátuas, todas elas extraídas de
blocos de pedra negra. Entre as três, a maior (a maior estátua existente no Egipto,
garantiram-lhe os sacerdotes) a tal ponto ultrapassava as outras duas que estas
chegavam-lhe aos joelhos. A estátua gigantesca, cujos pés mediam quase quatro
metros, representava Ramsés. Aos seus joelhos, de um lado a mãe, de outro a filha. Na sala do céu estrelado, o tecto
tinha oito metros de altura; aqui, quase se perdia de vista, e a inesperada mudança
da altura do céu, de sala para sala, desconcertava ainda mais o visitante. O
que particularmente impressionou Hecateu foi que a enorme estátua de Ramsés era
extraída de um bloco único, não apresentando sequer um arranhão ou mancha. Esta
obra, anotou, é admirável não só pelas dimensões, mas principalmente pela técnica
com que foi trabalhada e pela natureza da pedra. Na base, havia uma inscrição
que Hecateu fez com que traduzissem para o grego: sou Ramsés, rei dos reis,
dizia ela. E prosseguia um tanto obscuramente: se alguém quiser conhecer quão
grande sou e onde me encontro, que supere uma de minhas obras. A frase não
era unívoca. Quão grande, obviamente, podia referir-se às dimensões. Tal
interpretação podia ser corroborada pelo facto de que aquelas palavras se
encontravam justamente aos pés da gigantesca estátua, e de qualquer maneira não
destoavam muito da outra curiosidade que o faraó prometia satisfazer: onde
me encontro. Mas quão grande também podia ter um valor metafórico, isto é,
não se referir à estatura, mas, por exemplo, às obras mencionadas logo a seguir.
E também a outra expressão, onde me encontro, exactamente como convite ou desafio
a descobrir o sarcófago, dava a entender que sua localização era oculta e
permitida apenas sob certas condições. Em todo caso, o visitante curioso, a
partir daí, era desafiado, convidado a uma prova. Ela também formulada de
maneira ambígua: que supere uma de minhas obras, isto é, realize,
ao que parece, empreendimentos ainda maiores do que os meus. Se tal era a
interpretação correcta, trata-se essencialmente de uma proibição. A enorme estátua
se apresentava ao visitante ainda no início de seu caminho, e o desencorajava
na busca do sarcófago. Mas seria a única interpretação possível? Contudo,
Hecateu e seus acompanhantes continuaram. Isolada na enorme sala, sobressaía-se
uma outra estátua, com cerca de dez metros de altura, representando uma mulher
com três coroas. Aqui, o enigma foi-lhe imediatamente esclarecido: era,
disseram-lhe os sacerdotes, a mãe do soberano, e as três coroas significavam
que fora filha, mulher e mãe de um faraó. Da sala das estátuas passava-se para
um peristilo ornamentado de baixos-relevos representando a campanha do rei na
Bactriana. Ali, os sacerdotes também deram informações histórico-militares:
naquela campanha, disseram eles, o exército do rei contava com 400 mil infantes
e 20 mil cavaleiros, divididos em quatro formações, cada uma delas comandada
por um dos filhos do rei. A seguir, elucidaram os baixos-relevos. Mas nem
sempre concordavam nas explicações. Por exemplo, diante da parede onde se representava
Ramsés empenhado num cerco, tendo ao lado um leão, uma parte dos intérpretes,
anotou Hecateu, declarou se tratar de um verdadeiro leão, que, domesticado e
criado pelo rei, enfrentava a seu lado os perigos nas batalhas; outros, pelo
contrário, consideravam que o rei, inquestionavelmente corajoso, mas ao mesmo
tempo ávido por louvores a ponto de beirar a vulgaridade, fizera-se representar
com o leão para indicar a audácia de sua alma. Hecateu se dirigiu à parede seguinte,
onde estavam os inimigos vencidos e os prisioneiros, todos representados sem
mãos e sem órgãos genitais: pois efeminados, explicaram-lhe, e sem força
perante os perigos da guerra. Na terceira parede estava representado o triunfo
do rei retornado da guerra e os sacrifícios por ele realizados em agradecimento
aos deuses. Ao longo da quarta parede, por sua vez, destacavam-se duas grandes
estátuas sentadas, que a recobriam parcialmente. Lá, bem junto às estátuas,
havia três passagens. Este é o único caso em que Hecateu indica explícita e pormenorizadamente
o tipo de acesso de um aposento ao seguinte. Por essas três passagens
entrava-se numa outra ala do edifício, onde se celebravam, não mais as gestas
guerreiras, e sim as obras de paz do faraó». In Luciano Canfora, A Biblioteca Desaparecida, 1986, Companhia
das Letras, 1989, ISBN 978-857-164-051-1.
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