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As
Montanhas Negras do Alto Languedoc. Verão de 1207
«(…)
Este é um dia feliz para mim. Beatrice beijou Claire afectuosarnente. Estou mais
do que orgulhosa de te chamar minha nova filha. Claire tentou sorrir, mas o seu
estômago estava apertado em centenas de nós. Gostava de Beatrice, mas ela não
substituía a sua própria mãe, Alianor, que partiria no dia seguinte. A âncora
de Claire deveria ser agora a sua nova família, mas ela sentia-se como se
tivesse sido deixada à deriva num vasto e perigoso oceano. Pensar em Raoul
deixava-a trémula. O que diriam um ao outro? Ou será que não teriam de dizer
nada? As criadas trocavam risinhos enquanto salpicavam a cama de ervas, para
promover a fertilidade. Claire não era ignorante. Alianor encontrara-se sozinha
com ela várias semanas antes do casamento para explicar todas as alegrias e
deveres de se ser uma esposa. Ela vira animais a acasalar no pátio e galos
galarem as galinhas. Uma vez, nos estábulos, surpreendera um palafreneiro a
erguer-se de entre as pernas abertas de uma criada da cozinha, por isso sabia o
que acontecia aos homens quando excitados. A sua mãe dissera que o acto era,
supostamente, um prazer, mas Claire não conseguia imaginar como seria isso possível.
Se tinha de haver sangue, de certeza que estaria envolvida alguma dor. As suas
damas soltaram-lhe o véu de gaze e grinalda de flores de ouro do cabelo e a mãe
levou urna escova às ondas castanhas para as pentear e lhes dar lustro.
Filha,
tu és bela, disse Alianor como que por entre uma névoa. Estou tão orgulhosa de
ti. Quem me dera que aqui estivesse o teu pai para ver o dia do teu casamento. Claire
engoliu em seco, incapaz de responder. Normalmente recordava o pai, que
falecera cinco anos antes, com suave e melancólica afeição, mas nessa noite não
tinha espaço na sua mente para mais nada excepto o seu próprio medo.
Obedientemente, erguia e baixava os braços sob as ordens das mulheres e viu as
roupas amontoarem-se sobre o seu suporte até ficar nua. Perto do fogo, não
estava frio, mas a sua pele estava toda arrepiada. Fresca seda deslizou-lhe
pelos ombros quando foi enfiada num largo roupão, e o cabelo penteado por cima
dele era uma faixa de cor resplandecente. Sentia-se dormente. As pessoas falavam
com ela, mas não ouvia o que lhe era dito. A porta foi aberta de rompante por
um turbulento grupo de homens, Raoul enfiado no meio deles e nu por baixo da
sua capa. Um estridor de ruidosas gargalhadas e bem-humorados gracejos encheu o
quarto. Arriscando um rápido olhar a Raoul, Claire viu que a cor no seu rosto
era intensa e o sorriso tão fixo e nervoso como o dela. Beatrice colocou um
copo de vinho quente entre as mãos de Claire. Bebe e toma coragem, sussurrou.
Claire
ergueu o copo e bebeu. O gosto da canela e do quente vinho tinto inundou-lhe a
língua. Raoul juntou-se a ela e retirou-lhe o copo das mãos, levando os lábios
ao local onde ela bebera. Ao mesmo tempo, colocou a mão livre na sua cintura.
Os jovens convidados, e alguns dos mais velhos, que tinham trazido os seus
copos, brindaram um encorajamento. Claire corou. A palma de Raoul parecia
queimar através do fino robe de seda até à sua espinha. O padre Otho começou a
abrir caminho à cotovelada até ao centro para executar a bênção que limparia e
purificaria o leito matrimonial e abençoaria quaisquer frutos ali gerados.
Estava embriagado, com os olhos pretos húmidos e desfocados. Ora, ora. Olhava
lubricamente para Claire. Parece que foi há um momento que era um pequeno botão
no seu caule e agora vede a rosa aberta, pronta para ser muito bem colhida!
Enfiou o polegar da mão direita no punho fechado da esquerda num gesto que era
inequívoco. Fúria e vergonha cresceram no peito de Claire. Podia aceitar gracejos
ligeiros; faziam parte da tradição nupcial. Todos os noivos e noivas eram provocados
na sua noite de núpcias, mas não pelo padre, de rosto congestionado de álcool e
luxúria. Raoul ia investir contra ele, mas foi contido pela mão da mãe no seu
braço. Berenger de Monvallant disse por entre os dentes cerrados: padre, sugiro
que se confine às palavras de bênção. Otho tentou endireitar-se, mas apenas
conseguiu encostar-se a um dos convidados. Que falta de sentido de humor,
balbuciou, enquanto tentava precariamente manter o equilíbrio. Esticando o
lábio inferior como uma criança amuada, aproximou-se do leito e deu início à
bênção. Atropelou as palavras e não as disse nem na ordem nem na forma correcta,
antes de salpicar a cama ao acaso com água benta. Respirando tão ruidosamente
como um mastim, apresentou a Claire e Raoul uma cruz, para a beijarem.
Claire
sentiu-se nauseada. Não teria ficado surpreendida se visse uma cauda bifurcada
por baixo das saias do hábito de Otho. Incapaz de se obrigar a tocar a cruz com
os lábios, ela beijou o ar acima dela. Também Raoul beijou o ar, com o rosto
tenso de fúria reprimida. A fivela de ouro da sua capa cintilava com a sua
rápida respiração. O padre Otho arrotou. Vamos lá então ao trabalho, rapaz,
disse ele. A ver se temos um belo lençol ensanguentado para mostrar de manhã,
está bem? O seu sórdido divertimento terminou num guincho quando Raoul o
agarrou pela garganta. É uma pena que não viva para o ver!, rosnou. O rosto de
Otho escureceu. Um ruído surdo ergueu-se da sua traqueia e ele agarrou-se ao
pulso de Raoul, com as veias da testa a pulsar. Passado um momento, Berenger
interveio, mas não foi sem esforço que retirou a mão do filho da carne manchada
da sua vítima. Otho caiu no chão, agarrado ao pescoço e a silvar. Deixa-o ir, disse
Berenger. Não vais querer manchar a tua noite de núpcias com um crime». In
Elizabeth Chadwich, As Filhas do Graal, 1993, tradução de Ester Cortegano,
Edições Chá das Cinco, 2013, ISBN 978-989-710-050-5.
Cortesia de
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