domingo, 28 de agosto de 2016

A Catedral do Mar. Ildefonso Falcones. «Velha estúpida! Como te atreves a entornar o vinho. A mulher baixou a cabeça em sinal de submissão e, quando o senhor fez menção de lhe dar uma bofetada…»

jdact

Servos da terra. Ano de 1320. Quinta de Bernat Estanyol Navarcles. Principado da Catalunha
«(…) Até os cavalos, quietos, com os seus grandes olhos redondos assestados nele, pareciam aguardar a resposta de Bernat. Ao meu casamento, senhor. Com quem casaste? Com a filha de Pere Esteve, senhor. Llorenç Bellera permaneceu em silêncio, olhando Bernat por cima da cabeça do seu cavalo. Os animais resfolegaram ruidosamente. E?, ladrou Llorenç Bellera. A minha mulher e eu próprio, disse Bernat, tratando de dissimular o seu asco, sentir-nos-íamos muito honrados se sua senhoria e seus acompanhantes tivessem por bem juntar-se a nós. Temos sede, Estanyol, afirmou o senhor de Bellera, como única resposta. Os cavalos puseram-se em movimento sem necessidade de que os cavaleiros os esporeassem. Bernat, cabisbaixo, dirigiu-se para a casa, ao lado do seu senhor. No final do caminho tinham-se juntado todos os convidados, para o receber; as mulheres de olhos no chão, os homens descobertos. Um rumor ininteligível ergueu-se quando Llorenç Bellera se deteve diante deles. Vamos, vamos, ordenou-lhes, enquanto desmontava. Que siga a festa! As pessoas obedeceram e deram meia-volta, em silêncio. Vários soldados aproximaram-se dos cavalos e encarregaram-se dos animais. Bernat acompanhou os seus novos convidados até à mesa a que tinham estado sentados Pere e ele. Tanto as suas escudelas como os seus copos tinham desaparecido. O senhor de Bellera e os seus dois acompanhantes sentaram-se. Bernat afastou-se alguns passos quando estes começaram a conversar. As mulheres acudiram, rápidas, com jarros de vinho, pães, escudelas de galinha, pratos de porco salgado e com o borrego acabado de assar. Bernat procurou Francesca com o olhar, mas não a encontrou. Não estava entre as mulheres. O olhar de Bernat cruzou-se com o do sogro, que já estava junto dos restantes convidados, e este fez sinal com o queixo em direcção às mulheres. Com um gesto quase imperceptível, Pere Esteve abanou a cabeça e deu meia-volta. Continuem com a vossa festa!, gritou Llorenç Bellera com uma perna de borrego na mão. Vamos, venham, avancem! Em silêncio, os convidados começaram a dirigir-se para as brasas, onde os borregos tinham sido assados. Só um grupo permaneceu quieto, a salvo dos olhares do senhor e dos seus amigos: Pere Esteve, os filhos e mais alguns convidados. Bernat avistou o branco da camisa de linho entre eles, e aproximou-se. Vai-te embora daqui, estúpido!, rosnou o sogro. Antes que ele pudesse dizer alguma coisa, a mãe de Francesca aproximou-se, colocou-lhe um prato de borrego nas mãos e sussurrou-lhe: trata de atender ao senhor e não te aproximes da minha filha. Os camponeses começaram a dar conta do borrego, em silêncio, olhando de soslaio para a mesa. No terreiro só se ouviam as gargalhadas e os gritos do senhor de Navarcles e dos seus amigos. Os soldados descansavam, afastados da festa.
Antes, ouvia-vos rir, gritou o senhor de Bellera. De tal forma que me espantaram a caça. Riam, malditos sejam! Ninguém o fez. Bestas rústicas, disse para um dos seus acompanhantes, que receberam o comentário com gargalhadas. Os três saciaram o apetite com o borrego e o pão branco. O porco salgado e as escudelas de galinha ficaram abandonados na mesa. Bernat comeu de pé, um pouco afastado, e olhando de soslaio para o grupo de mulheres, entre as quais se escondia Francesca. Mais vinho!, exigiu o senhor de Bellera, levantando o copo. Estanyol, gritou de repente, procurando-o por entre os convidados, da próxima vez que me pagues o censo das minhas terras, terás de me trazer vinho como este, e não a zurrapa com que o teu pai me andou a enganar até agora. Bernat escutou-o, atrás dele. A mãe de Francesca aproximava-se com mais um jarro. Estanyol, onde estás tu? O cavaleiro bateu na mesa quando a mulher aproximava o jarro para lhe encher de novo o copo. Algumas gotas de vinho salpicaram a roupa de Llorenç Bellera. Bernat já se aproximara dele. Os amigos do senhor riam-se da situação e Pere Esteve levou as mãos ao rosto. Velha estúpida! Como te atreves a entornar o vinho. A mulher baixou a cabeça em sinal de submissão e, quando o senhor fez menção de lhe dar uma bofetada, fugiu e caiu por terra. Llorenç Bellera voltou-se para os amigos e desatou a rir, vendo como a anciã se afastava, gatinhando, Depois, recuperou a seriedade e dirigiu-se a Bernat: ai estás aqui, Estanyol. Vê só o que fazem as velhas inúteis. Por acaso pretendes ofender o teu senhor? Serás tão ignorante que não sabes que os convidados devem ser atendidos; pela senhora da casa? Onde está a noiva?, perguntou, passeando o olhar pelo terreiro. Onde está a noiva?, gritou, perante o silêncio de Bernat». In Ildefonso Falcones, A Catedral do Mar, 2006, Bertrand Editora, 2009, ISBN 978-972-251-511-5.

Cortesia de BertrandE/JDACT