segunda-feira, 29 de agosto de 2016

A Obra Prima Desaparecida. Jonathan Harr. «O palazzo ocupava um quarteirão completo. Tratava-se de um edifício gigantesco construído em travertino rústico e tijolo, coberto de fuligem e enegrecido pelo incessante tráfego do Corso»

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O inglês
«(…) Deram início ao seu trabalho de investigação na Biblioteca de Arte Nacional, situada na Piazza Venezia. Começaram por estudar um livro conhecido informalmente como a bíblia dos estudos sobre Caravaggio, compilada por uma historiadora de arte de seu nome Mia Cinotti. Tinha como subtítulo Tutte le Opere, Todas as Obras, e a sua bibliografia integrava três mil artigos de jornais, monografias e outras obras sobre Caravaggio. Na secção sobre o S. João, ficaram a saber que a maioria dos estudiosos acreditava que Caravaggio havia criado a obra entre 1598 e 1601, apesar de alguns apontarem 1596 como a data mais provável. Existiam onze cópias conhecidas. Cinotti considerava a versão do Capitolino descoberta por Denis Mahon a autêntica, apesar de a autora admitir que a pintura de Doria, a única cópia digna de importância, na sua opinião, poderia ter sido concebida pelo próprio Caravaggio. A primeira menção ao quadro foi efectuada por outro artista, Giovanni Baglione, que vivera e trabalhara em Roma na mesma época que Caravaggio. Os dois homens haviam sido rivais, inimigos implacáveis. Nenhum deles tinha algo de positivo a dizer acerca do outro. Trinta anos após a morre de Caravaggio, Baglione publicara uma série de pequenas biografias de artistas e escultores de Roma. Deixara registado que Caravaggio, um indivíduo agressivo, cujas obras eram excessivamente apreciadas por pessoas maldosas, havia criado o S. João e outras duas obras para um abastado cobrador romano chamado Ciriaco Mattei. Uma dessas obras, ao que parecia, era o desaparecido A Deposição de Cristo. Depois da morte de Mattei, segundo Cinotti, o S. João tivera uma história rocambolesca, passando por várias mãos antes de vir a acabar na Galeria Capitolina. A história do S, João de Doria era, simultaneamente, mais simples e envolta em contornos mais misteriosos. Conhecia-se apenas um proprietário, a família Doria Pamphili. A obra estivera na sua posse desde, pelo menos, 1666, ano em que veio à luz pela primeira vez num inventário familiar, mais de quinze anos após a morte de Caravaggio. Não se conhecia a história do quadro anterior a esta data. Vários estudiosos haviam tentado recuar no tempo, mas os seus esforços haviam sido infrutíferos. Francesca e Laura chegaram a acordo. Decidiram começar pela versão de Doria. Visto que era sobre este quadro que menos informação havia, parecia ser aquele que ofereceria as maiores probabilidades de dar origem a uma verdadeira descoberta. Para além disso, Palazzo Doria Pamphili ficava mesmo ao virar da esquina, na Via del Corso, cinco minutos a pé desde a biblioteca.
O palazzo ocupava um quarteirão completo. Tratava-se de um edifício gigantesco construído em travertino rústico e tijolo, coberto de fuligem e enegrecido pelo incessante tráfego do Corso. Ao centro do palazzo, visível através de uma entrada, as duas jovens estudantes vislumbraram um pátio repleto de laranjeiras, limoeiros e palmeiras enormes, um jardim onde quase não chegava qualquer som da cidade circundante. A família Doria Pamphila e os seus descendentes ocupavam este palazza havia quase quatro séculos. A galeria de arte, com uma colecção de centenas de pinturas e esculturas, estava aberta ao público. O arquivo da família encontrava-se bem no interior do palazzo. Nas traseiras do edifício, acabadas de sair de uma ruela estreita chamada Via della Gatta, Francesca e Laura entraram por uma porta de madeira castigada pelo tempo, subiram um lanço de escadas em mármore mal iluminado e atravessaram um corredor povoado de pequenos gabinetes pardacentos, o centro burocrático do património da família, opulento em tempos idos. Um homem sentado à escrivaninha indicou-lhes o caminho, percorrendo o corredor até chegarem a duas enormes portadas de madeira. Abriu-se diante delas uma sala espaçosa com o pé-direito alto e o tecto trabalhado, pavimento em terracotta e janelas com vistas para outro pátio. No centro da sala, jazia uma sólida mesa de madeira rodeada por estantes pejadas de centenas de antigos volumes encadernados a couro e estojos muito bem classificados.
Por uma porta entreaberta, Francesca conseguiu entrever o centro do arquivo, uma câmara comprida e estreita ladeada por prateleiras de metal cinzento que guardavam milhares de livros. A arquivista que as veio receber era uma jovem inglesa, apenas alguns anos mais velha do que elas, de longa cabeleira ruiva que lhe caía solta sobre o pescoço e de tez branca a fazer lembrar uma boneca de porcelana. Tinha uma voz doce, quase murmurada. De início, Francesca pensara que era assim que se devia falar no arquivo Doria Pamphili, apesar de não se achar mais ninguém na sala. Mais tarde, quando encontrara por acaso a arquivista em plena rua, Francesca compreendera que era esta a sua forma habitual de se exprimir. Como um espectro de tempos idos, observara». In Jonathan Harr, A Obra Prima Desaparecida, 2005, Editorial Presença, Lisboa, 2006, ISBN 978-972-233-676-2.

Cortesia de EPresença/JDACT