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Londres. Maio de 1537
«Sempre que é anunciada uma execução pelo
fogo, as tabernas de Smithfield encomendam mais uma porção de barris de
cerveja, mas quando a pessoa que vai ser executada é mulher e nobre de nascimento,
a cerveja é encomendada às carroças. Seria numa dessas carroças que eu viajaria,
na sexta-feira de Pentecostes, no vigésimo oitavo ano do reinado do Rei
Henrique VIII, para rezar pela alma da traidora condenada, lady Maryaret Bulmer.
Percorria a Cheapside Street, agarrada ao mapa de Londres que tinha copiado de um
livro em segredo, há duas noires, quando ouvi o brado do carroceiro. Agora que estava
numa rua tão larga e calcetada, conseguia avançar mais depressa, mas doíam-me as
pernas. Tinha passado a manhã a caminhar penosamente pela lama. Smithfield, quem
vai para Smirhfield? Era uma voz alegre, como se o destino anunciado fosse uma feira
do Dia de S. Jorge. Um pouco mais adiante, mesmo em frente de uma fábrica de curtumes,
vi quem apregoava: um homem corpulento, que fazia estalar um chicote sobre o
dorso de quatro cavalos atrelados a uma grande carroça. Meia dúzia de cabeças espreitavam
por cima das guardas da carripana. Esperai!, gritei, o mais alto que pude. Quero
ir para Smithfield. O carroceiro virou-se bruscamente; os seus olhos esquadrinharam
a multidão. Acenei e o seu rosto exibiu um sorriso húmido. Quando me aproximei,
senti o estômago contrair-se. Tinha jurado não falar com ninguém em todo o dia,
não procurar auxílio. O risco de ser descoberta era demasiado grande. Mas Smithfield
ficava fora das muralhas da cidade, para noroeste, ainda bastante longe. Ao ver-me
chegar, o carroceiro mirou-me de cima a baixo e o seu sorriso vacilou. Eu vestia
um pesado traje de lã, o único de que dispunha para aquela jornada. Tratava-se um conjunto de corpete e saia feito
para o pino do Inverno, não para a Primavera, e seguramente não para um dia em
que a neblina ondulante servia de âncora a ondas de calor. Tinha a bainha da saia
empastada de lama. Só podia agradecer o facto de ninguém poder espreitar através
do tecido pesado e ver a minha camisa encharcada em suor. Mas sabia que o meu aspecto
desalinhado não era a única causa da hesitação do carroceiro. O meu aspecto parece
estranho a muita gente. Tenho o cabelo preto como ónix polido, os olhos, castanhos
mesclados de verde. A minha pele cor de azeitona não fica vermelha em Julho, nem
pálida no Advento. Herdei as cores da minha mãe espanhola. Mas não as suas feições
delicadas. Não, o meu rosto é o do meu pai inglês: testa larga, malares altos e
queixo forte. É como se a dissonância do casamento dos meus pais lutasse na própria
estrutura da minha cara, à vista de todos. Num país de raparigas rosadas e brancas,
destaco-me como um corvo. Houve um tempo em que isso me perturbava, mas, aos vinte
e seis anos, já não me preocupava com tais ninharias. Um xelim pela viagem, dona, disse o carroceiro.
Pagai e arrancamos. Aquela exigência apanhou-me de surpresa, embora, claro, fosse
de esperar. Não tenho moedas, gaguejei. O carroceiro ladrou uma gargalhada. Julgais
que faço isto para me divertir? Tenho pouca cerveja..., bateu num barril de madeira
equilibrado atrás de si..., e preciso de ganhar com que pagar a carroça. Os passageiros
esticavam o pescoço por cima do barril, para olharem para mim. Esperai, atalhei. Procurei a pequena bolsa
de pano que escondera no bolso cosido ao meu vestido. Revolvi a bolsa e encontrei
um anel delgado. Não queria dar-lhe nada de maior valor. Ainda tinha de pagar alguns
subornos importantes. Estendi-lhe o anel. Isto chega? A carranca dele transformou-se
imediatamente numa expressão deliciada, e o pequeno anel de ouro da minha falecida
mãe desapareceu na palma da mão suja. Quando trepei para a carroça, vi um misto
de piedade e desprezo nos rostos dos outros passageiros. O meu anel devia valer
mais do que o preço da viagem. Descobri um bocado de palha limpa num canto e baixei
os olhos, tentando evitar os olhares curiosos assestados sobre mim, enquanto a carroça
se punha de novo em movimento. Alguém me acotovelou. Uma mulher robusta chegou-se
para o meu lado. Era de meia-idade e a única outra mulher presente. Sorriu e estendeu-me
um pedaço de pão escuro. Eu não comia nada desde a noite anterior. Normalmente,
orgulhava-me de resistir às ânsias da fome, da sensação de domínio sobre a minha
fraca carne mortal, mas a missão que empreendera exigia um certo vigor. Um pouco
de comida e um trago da cerveja aguada da caneca de madeira da minha companheira
de viagem deram forças ao meu corpo aturdido». In Nancy Bilyeau, A Coroa, 2012,
Editorial Presença, Lisboa, 2012, ISBN 978-972-234-862-1.
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