Cortesia
de wikipedia e jdact
O
Áugure
«(…)
Dediquei-me à mensagem ali mesmo. Não havia dúvidas de que a carta havia sido
escrita pela mesma pessoa que as anteriores: os mesmos cabeçalhos e caligrafia
delatavam seu autor. Leia-a, irmão!, insistiu. Logo compreendi tanta
insistência. O Áugure revelava, mais uma vez, algo que ninguém esperava ouvir.
Retrocedia quase sessenta anos, aos tempos do papa Eugénio IV, quando o
patriarca de Florença, Cosme de Medici, chamado o Velho, decidira financiar um concílio que poderia ter mudado para
sempre o rumo da cristandade. Era uma velha história. Ao que parece, Cosme
promovera um infrutífero encontro entre delegações diplomáticas muito díspares,
que durara vários anos, com o qual pretendia conseguir a reunificação da Igreja
oriental e a de Roma. Os turcos ameaçavam, então, estender sua influência sobre
o Mediterrâneo e era preciso detê-los de qualquer maneira. O velho banqueiro
tivera a estranha ideia de unir todos os cristãos sob uma mesma cabeça e
enfrentar o inimigo comum com a força da fé. Mas seu plano fracassara. Ou não.
O
que o Áugure revelava naquela mensagem é que existiu uma agenda secreta por
trás do concílio. Um objectivo mascarado, cujos efeitos ainda se faziam sentir seis
décadas depois em Milão. Segundo ele, além das discussões políticas da época, Cosme
Medici empregou boa parte de seu tempo em negociar com as delegações
provenientes da Grécia e de Constantinopla a compra de livros antigos,
instrumentos ópticos e até manuscritos, atribuídos a Platão ou a Aristóteles,
considerados perdidos. Mandou traduzir todos, sem excepção, e com eles aprendeu
coisas surpreendentes. Assim, descobriu que já em Atenas acreditavam na
imortalidade da alma e sabiam que os céus eram responsáveis por tudo o que se
movia na Terra. Entendamos bem: os atenienses não acreditavam em Deus, e sim na
influência dos corpos celestes. Segundo aqueles desprezíveis tratados, os astros
influenciavam a matéria graças a um calor espiritual, parecido ao que conecta
corpo e alma nos seres humanos. Aristóteles falou disso depois de aprender nas
crónicas da Idade do Ouro, e Cosme ficou fascinado com suas lições. Segundo o
Áugure, o velho banqueiro fundou uma academia no estilo das antigas, só para
ensinar esses segredos aos artistas. Por causa daquelas leituras, tinha certeza
de que o desenho de obras de arte era uma ciência exacta. Uma obra realizada de
acordo com certos códigos subtis actuaria como reflexo das forças cósmicas e
poderia ser utilizada para proteger ou destruir quem a possuísse.
Então?
Já se deu conta, frei Agustín?, a pergunta de Gozzoli me tirou do aturdimento. O
Áugure diz que a arte pode ser empregada como arma! De facto. Um parágrafo mais
abaixo, a mensagem falava da força da geometria. O número, a harmonia, o som,
eram elementos que podiam ser aplicados a uma obra de arte para que irradiasse
influências benéficas
à sua volta. Pitágoras, um dos gregos defensores da Idade do Ouro que
deslumbrou Cosme Medici, dizia que os únicos deuses comprováveis são os números.
O Áugure amaldiçoava todos. Uma arma, murmurei. Uma arma que o Mouro pretende
esconder em Santa Maria delle Grazie. Exacto! Gozzoli estava orgulhoso. É exactamente
o que diz. Não é incrível?
Eu
estava começando a entender o repentino interesse de mestre Torriani por tudo
isso. Anos atrás, nosso amado superior geral havia condenado os trabalhos do pintor
Sandro Botticelli por causa de uma suspeita similar. Acusara-o de empregar imagens
inspiradas em cultos pagãos para ilustrar obras da Igreja, mas sua denúncia
encerrava algo mais. Graças aos informantes de Betânia, Torriani soube que
Botticelli, em Villa di Castello, da família Medici, havia representado a
chegada da Primavera utilizando uma técnica mágica. As ninfas que dançavam no
quadro haviam sido dispostas como as peças de um gigantesco talismã. Mais tarde,
Torriani descobriu que Lorenzo di Pierfrancesco, patrão de Botticelli, havia lhe
pedido um amuleto contra o envelhecimento. O quadro era o remédio mágico solicitado.
Na realidade, encerrava todo um tratado contra a passagem do tempo, que incluía
metade das divindades do Olimpo dançando contra o avanço de Cronos. E
pretendiam fazer passar por devota uma obra assim, propondo-a como decoração
para uma capela florentina!
Nosso
superior geral descobriu a infâmia a tempo. A chave foi dada por uma das ninfas
de Primavera, Chloris, pintada com um ramo de trepadeira saindo de sua
boca. Era o símbolo inequívoco da linguagem verde dos alquimistas,
desses buscadores da eterna juventude, embebidos de ideias espúrias que o Santo
Ofício (maldito)
perseguia
onde quer que despontassem. Embora em Betânia jamais tenhamos conseguido
decifrar os detalhes dessa misteriosa linguagem, a suspeita bastou para que o
quadro nunca fosse mostrado em uma igreja. Mas agora, se o Áugure estivesse
certo, essa história ameaçava se repetir em Milão. Diga-me, irmão Giovanni,
sabe por que o mestre Torriani me pede que analise esta mensagem? Meu
assistente, que já havia se sentado a uma mesa contígua e se distraía olhando
um livro de horas recentemente ilustrado, fez cara de quem não entendera a
pergunta: Como? Não chegou ao fim da carta? Tornei a fixar os olhos nela. No
último parágrafo, o Áugure falava da morte de Beatrice d’Este e do quanto isso
aceleraria a consecução do plano mágico do Mouro. Não vejo nada de particular,
querido Giovannino argumentei. Não lhe chama a atenção o facto de que cite a
morte da duquesa em termos tão explícitos? E por que haveria de me chamar a
atenção? O padre Gozzoli bufou: porque o Áugure datou e enviou esta carta em 30
de Dezembro. Três dias antes do infausto parto de donna Beatrice». In
Javier Sierra, A Ceia Secreta, 2013, Editora Planeta, 2014, ISBN
978-854-220-327-1.
Cortesia de
EPlaneta/JDACT