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A
Fundação. Arquimaes, o sábio dos sábios
«(…)
Olho-me ao espelho e vejo que a cabeça de dragão que tenho desenhada na testa,
entre as duas sobrancelhas, continua no seu sítio. Tal como essas estranhas
manchas negras enormes, que se encontram fundidas sobre a minha pele e que
decoram as minhas faces. Por sua culpa vejo-me como uma aberração e sinto-me
diferente do resto do mundo. Os meus colegas de escola encarregam-se de mo
recordar todos os dias. E o mesmo acontece com todas as pessoas com quem me encontro,
que quando me vêem, não podem evitar sussurrar: pobre rapaz. E o pior é que sou
forçado a dar-lhes razão: o meu aspecto é verdadeiramente deprimente. Olá,
dragão, cumprimento-o como todos os dias. Estás bom? Nunca mais te vais embora?
Estou condenado a ser um bicho raro durante toda a minha vida. Estou destinado
a viver sozinho e isolado do resto das pessoas. Os únicos que me suportam são o
meu pai e os que vivem connosco na Fundação, os meus únicos amigos. Esfrego bem
a minha face e a minha testa na esperança de que estas malditas manchas negras
se apaguem e desapareçam de uma vez da minha vida, mas sei que isso não vai
acontecer. Sei que me acompanharão até ao dia da minha morte. Sem dúvida, serei
uma pessoa esquisita a quem toda a gente vai apontar com o dedo. Por vezes
penso que deveria estar num circo. Pelo menos, ver-me-ia como alguém mais
normal. Um miúdo que parece um cartaz publicitário, com a cabeça de um dragão
pintada na testa, chamaria a atenção de muita gente que estaria disposta a
pagar para rir a bandeiras despregadas, da mesma forma que o fazem com os
palhaços e os aleijados. De certeza que teria mais êxito do que a mulher
barbuda e o homem-elefante juntos. Sinto um formigueiro por todo o corpo que
não consigo eliminar e que está a começar a pôr-me nervoso. Já há alguns dias
que me incomoda, mas se continuar a coçar-me desta maneira, de certeza que
ainda farei alguma ferida. É estranho, mas tenho a impressão de que as manchas
se alastraram, de que são mais numerosas… Agora chegam-me até à parte lateral
das faces e existem algumas sobre o nariz. Isto vai de mal a pior! Enquanto me
visto, esforço-me por encontrar um significado para o sonho desta noite, mas não
consigo. É como um hieróglifo daqueles que o meu pai colecciona há anos e que é
incapaz de decifrar. Os meus sonhos são uma loucura que nem sequer posso
partilhar com ninguém. O mais curioso é que neles sempre aparecem as mesmas
personagens, os mesmos temas... São como os capítulos de um livro fantástico.
No entanto, esta noite foi a pior de todas. Até agora parecia um jogo, mas as
coisas complicaram-se. Nunca havia sonhado com algo de tão impactante e
perigoso. Agarro na minha mochila e abro-a para me assegurar de que levo tudo o
que vou utilizar no liceu. Tiro alguns livros e levo comigo os que penso que me
irão fazer falta. Asseguro-me de que tenho cadernos, esferográficas, lápis e
borracha. Está tudo em ordem. Todas as manhãs, quando faço a revisão do
material, gosto de imaginar que preparo a bagagem para ir de viagem para algum
lugar longínquo, ainda que essa seja uma fantasia impossível. Há algumas coisas
que me prendem a esta cidade e que não poderei abandonar... O meu pai, a
recordação da minha mãe, a Fundação, Sombra… Talvez não sejam muitas, mas são
muito importantes, são as poucas coisas que me interessam. Daria qualquer coisa
para me afastar desta vida tão amarga. Antes de sair pego no livro que tenho
sobre a mesinha-de-cabeceira e que terminei de ler. Trata-se da história do rei
Artur, o meu herói favorito. Desço as escadas devagar e tropeço em Sombra, o
ajudante do meu pai, que me dá um encontrão, disparando como um remoinho: Sombra,
o que fazes?, grito sem poder conter-me. Todavia, ele não fez caso e continuou
a correr, como se estivesse a perseguir alguma coisa... Maldita ratazana!,
exclama, ao mesmo tempo que vai batendo no chão com uma vassoura. Se te volto a
ver, mato-te! O pobre é incapaz de acabar com ela e detém-se no patamar da
escada, absolutamente exausto. Apoia-se de encontro à parede e enxuga o suor da
testa. Cada dia há mais ratazanas. Teremos de fazer alguma coisa, murmura, enquanto
tenta recuperar o fôlego. Esse maldito animal estava a roer um manuscrito do
século X. Ainda bem que cheguei a tempo de impedi-lo. Acalma-te, que o caso
também não é para tanto. Não e para tanto? Estás a brincar? Achas certo que
esses bichos comam os livros? Não, claro que não. O que eu quero dizer é que
não adianta nada ficares assim nesse estado. Quando vi essa ratazana a devorar
o pergaminho, deu-me cá uma raiva que... Não duvido. Já viste o papá esta
manhã, não já? Ele está no seu gabinete. Hoje levantou-se cedo. Ele está bem? Na
mesma, como ontem. Creio que não melhorou, explica ele. Além do mais, recusa-se
a tomar medicamentos para se curar, de maneira que... Vou visitá-lo, para ver
se consigo convencê-lo. Arturo, dormiste bem?, pergunta Sombra,
inesperadamente. Sim, bem... Como sempre». In Santiago Garcia Clairac, O Reino dos
Sonhos, O Exército Negro, 2006, tradução de Ana Maria Silva, Planeta
Manuscritos, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-657-020-0.
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