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Lusbuna.
Verão de 1142
«(…)
Pára de sonhar, Aischa! Pôs-se de pé num salto. Deparou com a mãe, que a olhava
severa. Mas a moça recompôs-se depressa. Afinal, Zubaida raramente sorria. Além
disso, Aischa sabia que ela não amava mais ninguém como a sua única filha, cujo
nascimento fora considerado um milagre. Antes dela, Zubaida dera duas crianças
mortas à luz, da segunda vez tinha ela própria quase morrido e ficara infértil
durante anos. Assustaste-me, mãe. Não foste para a rua com as outras? Apesar do
receio que todos sentem, desconfio que em breve se começará a festejar mais
esta vitória... Derrota! Uma derrota do rei cristão, filho do saudoso conde
Henrique, de quem meu pai era vassalo fiel! Pensas mesmo que eu era capaz de
festejar tal coisa? Oh tem cuidado. Se alguém te ouve... Não ficou mais ninguém
em casa, depois que mandei as duas ajudantes de cozinha a um recado. Queria
falar a sós contigo. Ora, e como é que sabias que eu vinha antes dos outros? Tinha
a certeza, respondeu Zubaida, adquirindo um olhar febril. Deus disse-me! Por
Alá, pensou a moça, estará a endoidecer? Anda filha! Agarrou-lhe na mão. Quero
mostrar-te uma coisa. Agora? Estou tão cansada... Vamos, antes que mais alguém
surja! Zubaida conduziu-a à cozinha e abriu o alçapão que dava acesso à cave,
onde se armazenavam trigo, cevada, uvas-passas, amêndoas, figos secos e azeite
ao abrigo do calor. Queres conferir agora as reservas?, perguntou Aischa
espantada, enquanto as duas desciam a escada de madeira. Mas a mulher apenas
retorquiu: ajuda-me a arrastar estas bilhas! Depois de terem mudado as bilhas
de lugar, o espanto da moça não parou de crescer. Na esquina à sua direita, a
mãe contou, do chão para cima, seis tijolos e depois sete para a esquerda.
Empurrou o sétimo tijolo sem esforço para dentro da parede e puxou o que estava
ao lado desse. Do buraco assim aberto tirou uma pequena caixa de madeira. O que
é isso, mãe? Olha minha filha! Zubaida abriu a caixa emocionada. Lá dentro,
encontrava-se uma bolsa de linho escuro. Para espanto de Aischa, a bolsa
guardava uma das jóias mais bonitas que já vira: uma cruz de ouro, enfeitada
com pedras preciosas, de entre as quais sobressaíam quatro grandes esmeraldas,
uma em cada ponta. Estarrecida, perguntou: a quem pertence? É a única coisa que
sobrou do património da minha família. E tu conseguiste salvá-la sem ninguém
saber? Mesmo depois de teres sido escravizada? Zubaida replicou com um sorriso:
eu sabia onde o meu pai a tinha escondido. E há alguns anos viajei a norte de
Leiria, não te lembras? Lembro. O pai autorizou-te, quando lhe disseste que
querias visitar o local do teu nascimento pela última vez. Nem acreditava no
que via, quando encontrei a cruz enterrada no mesmo sítio de sempre! Zubaida
fechou os olhos e encostou a cruz ao peito. Os seus lábios começaram a murmurar
uma prece cristã, uma ladainha que causava arrepios a Aischa e a moça sentiu necessidade
de quebrar o encanto: porque me mostras isso agora? Zubaida abriu os olhos: o
filho do conde Henrique conquistará Lusbuna, o que significará a ruína do teu
pai e de toda a família. Pela tua alma, não digas uma coisa dessas! Mas é a verdade.
Repetiu, de olhos novamente febris: Deus disse-me! O nosso fim está próximo!.
As palavras de Abdalah soavam na cabeça de Aischa, que acabou a suplicar: Alá
se amerceie de nós! Alá de nada te adiantará, quando Afonso Henriques
regressar, trazendo consigo um exército de dezenas de milhar de cruzados, que o
ajudarão a conquistar a cidade. Montará um longo cerco, muita gente morrerá, o
rio cobrir-se-á de sangue... Pára com isso! Zubaida agarrou-lhe as mãos: se eu
também me for, serás a única a ter conhecimento deste pequeno tesouro. Tu sabes
falar a língua dos cristãos e conheces muito da sua religião... Mas porque
hás-de tu morrer? Eu não quero que morras, mãe! Eu não tenho medo da morte,
filha. Sabes bem como esta minha vida de mentiras e aparências me asfixia. Cada
vez me custa mais suportar esta tortura. Zubaida tornou a pôr a cruz dentro da
bolsa e esta na sua caixa, que a mulher devolveu ao buraco. Depois de a parede
estar tapada, agarrou os ombros da filha e perguntou: Fixaste o esconderijo? Acho
que sim. Vê lá. Eu não quero que te arruines com o resto da família. Mas... Jura
que não contarás a ninguém o que te mostrei hoje! As mãos de Zubaida
apertavam-lhe os ombros, os olhos febris espetavam-se nos seus. Aischa baixou a
cabeça, murmurou: eu não sei se… A mãe abanou-a. Olha para mim e jura! Relutante,
a moça fez o que ela lhe pedia». In Cristina Torrão, A Cruz de Esmeraldas,
Edição Ésquilo, 2009, ISBN 978-989-809-261-8.
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Ésquilo/JDACT