segunda-feira, 12 de setembro de 2016

A Cruz de Esmeraldas. Cristina Torrão. «E tu conseguiste salvá-la sem ninguém saber? Mesmo depois de teres sido escravizada? Zubaida replicou com um sorriso: eu sabia onde o meu pai a tinha escondido»

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Lusbuna. Verão de 1142
«(…) Pára de sonhar, Aischa! Pôs-se de pé num salto. Deparou com a mãe, que a olhava severa. Mas a moça recompôs-se depressa. Afinal, Zubaida raramente sorria. Além disso, Aischa sabia que ela não amava mais ninguém como a sua única filha, cujo nascimento fora considerado um milagre. Antes dela, Zubaida dera duas crianças mortas à luz, da segunda vez tinha ela própria quase morrido e ficara infértil durante anos. Assustaste-me, mãe. Não foste para a rua com as outras? Apesar do receio que todos sentem, desconfio que em breve se começará a festejar mais esta vitória... Derrota! Uma derrota do rei cristão, filho do saudoso conde Henrique, de quem meu pai era vassalo fiel! Pensas mesmo que eu era capaz de festejar tal coisa? Oh tem cuidado. Se alguém te ouve... Não ficou mais ninguém em casa, depois que mandei as duas ajudantes de cozinha a um recado. Queria falar a sós contigo. Ora, e como é que sabias que eu vinha antes dos outros? Tinha a certeza, respondeu Zubaida, adquirindo um olhar febril. Deus disse-me! Por Alá, pensou a moça, estará a endoidecer? Anda filha! Agarrou-lhe na mão. Quero mostrar-te uma coisa. Agora? Estou tão cansada... Vamos, antes que mais alguém surja! Zubaida conduziu-a à cozinha e abriu o alçapão que dava acesso à cave, onde se armazenavam trigo, cevada, uvas-passas, amêndoas, figos secos e azeite ao abrigo do calor. Queres conferir agora as reservas?, perguntou Aischa espantada, enquanto as duas desciam a escada de madeira. Mas a mulher apenas retorquiu: ajuda-me a arrastar estas bilhas! Depois de terem mudado as bilhas de lugar, o espanto da moça não parou de crescer. Na esquina à sua direita, a mãe contou, do chão para cima, seis tijolos e depois sete para a esquerda. Empurrou o sétimo tijolo sem esforço para dentro da parede e puxou o que estava ao lado desse. Do buraco assim aberto tirou uma pequena caixa de madeira. O que é isso, mãe? Olha minha filha! Zubaida abriu a caixa emocionada. Lá dentro, encontrava-se uma bolsa de linho escuro. Para espanto de Aischa, a bolsa guardava uma das jóias mais bonitas que já vira: uma cruz de ouro, enfeitada com pedras preciosas, de entre as quais sobressaíam quatro grandes esmeraldas, uma em cada ponta. Estarrecida, perguntou: a quem pertence? É a única coisa que sobrou do património da minha família. E tu conseguiste salvá-la sem ninguém saber? Mesmo depois de teres sido escravizada? Zubaida replicou com um sorriso: eu sabia onde o meu pai a tinha escondido. E há alguns anos viajei a norte de Leiria, não te lembras? Lembro. O pai autorizou-te, quando lhe disseste que querias visitar o local do teu nascimento pela última vez. Nem acreditava no que via, quando encontrei a cruz enterrada no mesmo sítio de sempre! Zubaida fechou os olhos e encostou a cruz ao peito. Os seus lábios começaram a murmurar uma prece cristã, uma ladainha que causava arrepios a Aischa e a moça sentiu necessidade de quebrar o encanto: porque me mostras isso agora? Zubaida abriu os olhos: o filho do conde Henrique conquistará Lusbuna, o que significará a ruína do teu pai e de toda a família. Pela tua alma, não digas uma coisa dessas! Mas é a verdade. Repetiu, de olhos novamente febris: Deus disse-me! O nosso fim está próximo!. As palavras de Abdalah soavam na cabeça de Aischa, que acabou a suplicar: Alá se amerceie de nós! Alá de nada te adiantará, quando Afonso Henriques regressar, trazendo consigo um exército de dezenas de milhar de cruzados, que o ajudarão a conquistar a cidade. Montará um longo cerco, muita gente morrerá, o rio cobrir-se-á de sangue... Pára com isso! Zubaida agarrou-lhe as mãos: se eu também me for, serás a única a ter conhecimento deste pequeno tesouro. Tu sabes falar a língua dos cristãos e conheces muito da sua religião... Mas porque hás-de tu morrer? Eu não quero que morras, mãe! Eu não tenho medo da morte, filha. Sabes bem como esta minha vida de mentiras e aparências me asfixia. Cada vez me custa mais suportar esta tortura. Zubaida tornou a pôr a cruz dentro da bolsa e esta na sua caixa, que a mulher devolveu ao buraco. Depois de a parede estar tapada, agarrou os ombros da filha e perguntou: Fixaste o esconderijo? Acho que sim. Vê lá. Eu não quero que te arruines com o resto da família. Mas... Jura que não contarás a ninguém o que te mostrei hoje! As mãos de Zubaida apertavam-lhe os ombros, os olhos febris espetavam-se nos seus. Aischa baixou a cabeça, murmurou: eu não sei se… A mãe abanou-a. Olha para mim e jura! Relutante, a moça fez o que ela lhe pedia». In Cristina Torrão, A Cruz de Esmeraldas, Edição Ésquilo, 2009, ISBN 978-989-809-261-8.

Cortesia de Ésquilo/JDACT