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Holanda.
1629
«O povo é parvo. Tanto se faz de cego, como enxerga
o que o bom-senso não vê. Tanto se faz de surdo, como ouve embevecido as
maiores asneiras. Pode manter-se mudo por anos a fio ou, se bem orquestrado,
bradar gritos de glória ou de revolta. Só depende da política. Era sobre isso que
Frederik Hendrik reflectia, enquanto aguardava que o seu secretário fizesse
entrar o mais recente grande herói das Províncias Unidas. Meses antes, à altura
da Baía de Matanzas, em Cuba, o tal sujeito conseguira um feito inúmeras vezes
tentado e sempre mal-sucedido: capturar o carregamento anual de ouro e prata
que os galeões espanhóis traziam das minas do Novo Mundo. Um apresamento avaliado
em doze milhões de florins, rendimento excepcional para a Companhia das Índias
Ocidentais, da qual o novo herói era empregado. Piet Heyn, Alteza, anunciou,
com pompa e cerimónia, Constantino Huygens, o secretário. Que decepção. O ídolo
do povo era um homenzinho de baixa estatura, gordote, moreno, cabelo cortado
rente com profundas entradas nas têmporas, olhinhos miúdos, bigodes
mal-arrumados e fartos, além de uma ridícula barbicha que, como a coroar o
conjunto, emprestava-lhe a singular aparência de uma foca de cavanhaque. Afora
que metido naquelas roupas domingueiras... Bem-vindo, saudou o príncipe de
Orange, disfarçando o seu desapontamento com expressiva inflexão de voz. Queiras
aproximar-te. Eu cá não sou um desses cães espanhóis. Não mordo. Piet desejava
se mostrar impecável. Esforçando-se para se manter digno das circunstâncias,
emitiu um sorriso tímido, sem saber o que dizer. Constantino veio em seu
socorro. Sua Alteza reservou uma surpresa para Vossa Mercê. Uma grande honra. Grande
honra?, surpreendeu-se o visitante, passeando os olhos pelas paredes forradas
de ricos quadros e tapeçarias. Que honra maior pode um pobre marujo como eu
desejar, que ser recebido no Binnenhof pelo filho de Guilherme, o Pai
da Pátria, e irmão do saudoso Maurício de Orange?
Frederik
Hendrik não gostou da observação. Uma ruga de mau humor sulcou-lhe a fonte. Já
fazia quatro anos desde a morte do meio-irmão Maurício, mas o defunto
continuava a lhe fazer sombra, bem vivo na memória popular. Anos desventurados,
aqueles. Começara com a rendição de Breda aos espanhóis de Flandres, autorizada
por ele nos primeiros dias de governo. Logo depois, a guerra entre a Suécia e a
Polónia provocara a quase paralisia do comércio no Mar Báltico. Como se não
bastasse, os corsários de Dunquerque, a serviço dos espanhóis, estavam a
capturar navios mercantes holandeses no Canal da Mancha. Pior. Os Habsburgo da
Áustria, aparentados e aliados dos reis de Espanha, haviam estendido seu poder
até o norte da Alemanha, adentrado pela floresta de Veluwe, ultrapassado a
fronteira da província de Gelderland e até bloqueado aos holandeses o tráfego
pelo Rio Reno. Para um país que vivia essencialmente do comércio, era uma
calamidade. Desde que sacudira o jugo espanhol e declarara independência, a
República das Províncias Unidas raramente se vira em situação tão embaraçosa.
Ainda
assim, disse o Stadhouder num misto de bonomia e contrariedade, já que um
elogio vazio não lhe custava absolutamente nada, este apresamento que
fizestes... Chegou a boa hora. Foi apenas um... Pelos ossos do meu pai... Uma
espécie de resgate, Alteza, emendou o homenzinho com humildade. A única chance
que eu tinha de me redimir da perda da Bahia. Sim, eu sei. Frederik levantou-se
da escrivaninha, cruzou os braços às costas e caminhou solenemente até uma das
janelas do seu luxuoso salão de trabalho, nas ampliações do antiquíssimo castelo
dos condes da Holanda.
Filho
de Louise de Coligny, a quarta e última esposa de Guilherme, o Pai
da Pátria, herdara da mãe francesa a delicadeza dos traços e, não se
sabe de quem, certos gestos, por assim dizer, de um salta-pocinhas.
Amante das artes, culto e refinado, usava os cabelos prateados quase à altura
dos ombros, bigodes finos de pontas ligeiramente voltadas para cima e uma
originalíssima pequena porção de barba, estreita e recta, descendo-lhe do
centro do lábio inferior até o queixo. Com precauções um tanto descabidas, o
príncipe afastou ligeiramente a cortina de uma das janelas da sacada, instalada
na última reforma daquela ala dd Binnenhof. Do outro lado do Hofvijver,
o lago transformado em fosso para proteger o castelo, observou uma vez mais a
multidão silenciosa. Parecia que todo o populacho de Haia, a capital da
República, ali se postara à espera de alguma novidade. Foste tu que trouxeste
essas gentes todas para cá, senhor Heyn? De maneira alguma, Alteza, apressou-se
em se desculpar o outro, um tanto constrangido. Apenas... Pelo Deus que nos
rege... Quando recebi a convocação de Vossa Alteza, comentei numa taverna.
Orgulho, com certeza. Um tantinho de genebra, também. E hoje, quando cá cheguei
para atender ao vosso honroso chamado... Compreendo, aquiesceu o Stadhouder,
afastando-se discretamente do seu posto de observação e caminhando em direcção
ao visitante. Pelo que soube, no Brasil tinhas patente de almirante da WIC.
Não era assim?» In Aydano Roriz, A Guerra dos Hereges, Editora Europa, 2010, ISBN
978-857-960-043-2.
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