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«(…)
O homem que se chamava Uccello de Firenze tentou mudar de assunto. O senhor não
me daria a honra, milorde, de contar como foi a captura do galeão do tesouro Cacafuego?
E o senhor estava, devia estar, com Drake em Valparaíso e em Nombre de Dios
quando ele foi ferido... Hauksbank atirou o copo contra uma parede e puxou a
espada. Canalha, disse. responda direito ou morre. O clandestino escolheu com
cuidado as palavras. Milorde, disse, aqui estou, percebo agora, para me
oferecer como seu factótum. Mas a verdade, acrescentou depressa, enquanto a
ponta da espada tocava sua garganta, é que tenho também um propósito mais distante.
De facto, eu sou o que se pode chamar de um homem comprometido com uma busca,
uma busca secreta, além disso, mas devo alertar o senhor que meu segredo tem sobre
ele uma maldição, lançada pela mais poderosa feiticeira de seu tempo. Só um homem
pode ouvir o meu segredo e viver, e eu não gostaria de ser responsável por sua
morte. Lorde Hauksbank desse Nome riu de novo, não um riso feio dessa vez, um
riso de dispersar nuvens e fazer o sol voltar a brilhar. Você me diverte,
passarinho, disse. Imagina que tenho medo da maldição da sua bruxa de cara
verde? Eu dancei com o barão Samedi no Dia dos Mortos e sobrevivi ao seu uivo
de vodu. Vou ficar muito ofendido se não me contar tudo imediatamente. Então
seja, começou o clandestino. Existiu um dia um príncipe aventureiro de nome Argalia,
também chamado Arcalia, um grande guerreiro que possuía armas encantadas, que tinha
ao seu serviço quatro gigantes terríveis e uma mulher com ele, Angelica... Pare,
disse lorde Hauksbank desse Nome, apertando a testa. Você está me dando dor de
cabeça. Então, depois de um momento: continue... Angelica, uma princesa do sangue
real de Gêngis Khan e Tamerlão... Pare. Não, continue... a mais bela... Pare. E
lorde Hauksbank caiu no chão, inconsciente.
O
viajante, quase envergonhado com a facilidade com que havia instilado o láudano
no copo de seu hospedeiro, devolveu cuidadosamente a caixinha de madeira com os
tesouros ao seu esconderijo, enrolou-se na capa multicolorida e correu para o
convés principal gritando por socorro. Ganhara a capa numa mão de scarabocion, jogado contra um perplexo mercador
de diamantes venezianos que não conseguia acreditar que um mero florentino pudesse
chegar ao Rialto e bater os locais em seu próprio jogo. O comerciante, um judeu
de barba e cachos chamado Shalakh Cormorano, mandara fazer o casaco
especialmente na mais famosa alfaiataria de Veneza, conhecida como Il Moro
Invidioso por causa do retrato de um árabe de olhos verdes na placa sobre a
porta, e era a maravilha do ocultista o casaco, o forro uma catacumba de bolsos
secretos e dobras ocultas nas quais o mercador de diamantes podia esconder sua
valiosa mercadoria, e um aventureiro como Uccello di Firenze podia esconder
toda sorte de truques. Depressa, meus amigos, depressa, o viajante chamou com
uma convincente mostra de aflição. Milorde precisa de nós. Se no meio dessa
rija tripulação de corsários-feitos-diplomatas havia muitos cínicos de olhos
semicerrados cujas suspeitas se atiçaram pelo súbito colapso de seu líder e que
começaram a olhar o recém-chegado de uma forma que não tendia para sua boa
saúde, eles foram em parte tranquilizados pela preocupação que Uccello di
Firenze demonstrou pelo bem-estar de lorde Hauksbank. Ele ajudou a carregar o
homem inconsciente para seu catre, despiu-o, batalhou com seu pijama, aplicou
compressas quentes e frias em sua testa e se recusou a dormir ou comer enquanto
a saúde do milorde escocês não melhorasse. O médico de bordo declarou que o
clandestino era uma ajuda inestimável e ao ouvir isso a tripulação voltou a
seus postos resmungando, com um encolher de ombros. Quando estavam sozinhos com
o homem desacordado, o médico confessou a Uccello o quanto o intrigava a recusa
do aristocrata em despertar de seu súbito coma. Nada de errado com o homem pelo
que posso ver, Deus seja louvado, só que ele não acorda, disse o médico, e
neste mundo sem amor talvez seja mais sábio sonhar do que acordar. O médico era
um indivíduo simples, endurecido na batalha, chamado Benza-Deus Hawkins, um
cirurgião de bom coração e limitados conhecimentos médicos que estava mais
acostumado a remover balas espanholas dos corpos de seus colegas marinheiros e costurar
cortes de cutelo depois de combates corpo a corpo com os espanhóis, do que
curar misteriosas doenças do sono chegadas do nada, como um clandestino ou um
juízo de Deus». In Salman Rushdie, A Feiticeira de Florença, Publicações dom Quixote,
2008, ISBN 978-972-203-692-4.
Cortesia de
PdQuixote/JDACT